Europa brasileira 4 – Asco
* Por
Urda Alice Klueger
Estou aqui a lembrar
do que me contou o João. Claro que o nome dele não é João, pois não sou tansa o
suficiente para botar o nome verdadeiro dele e fazer com que ele incorra no
desagrado dos poderosos que poderão se armar com represálias e acabar com o pobre
trabalhador blumenauense, oficial pedreiro, que ganha a vida com dignidade
construindo as casas e os edifícios para a burguesia. João é jovem, é casado,
tem três filhinhos – com seu suado salário comprou um terreninho numa encosta e
construiu uma bela casinha também para si, fez varanda, garagem, a mulher dele
botou cortinas nas janelas, plantou roseiras na frente – a vida ia que era uma
beleza, João pensando em arranjar um cachorrinho para brincar com as crianças,
quando veio o Desastre, a Desgraça – e
numa tarde de chuva, em novembro de 2008, a casinha e o terreno dele
escorregaram morro baixo, e mal e mal ele conseguiu salvar a família. Faz algo
como 105 dias que tal ocorreu, e João teve a grande sorte de não ter que ir com
a família para um dos muitos abrigos da cidade, onde ocorreram coisas que nem
se acredita – um cunhado dividiu com ele a casinha onde morava, e lá também
havia duas crianças.
Tá, há 105 dias atrás
esta minha cidade estava em tal caos que só estando aqui para acreditar, e
faltou comida na casinha onde João se abrigara. Tal não seria problema, claro,
as estradas de acesso à cidade mal davam conta de deixar passar os caminhões e
caminhões de donativos que chegavam de todo o país e do exterior, tanta comida
que agora, passados os tantos 105 dias, o responsável pelo assunto na cidade
andou informando que ainda há 200 TONELADAS de donativos estocados. E João foi
em busca de comida para a sua gente.
- Amiga – ele me disse – perdi a conta de
quantos cadastros tive que fazer aqui e ali para ganhar algo para trazer para
as crianças. Se eu conseguisse um quilozinho de arroz que fosse já ficaria
feliz – não havia mais nada para as crianças comerem.
Pois vocês acham que
João ganhou um quilozinho de arroz? Ganhou nada! E tinha gente ganhando carros
tão cheios de comida que as rodas ficavam meio arriadas de tanto peso! Quem
será que levou tanta comida para onde?
Sei que João e sua
gente nada ganharam, tiveram que se virar com a fome, vendo gente com carros de
rodas arriadas de tão lotados passarem defronte da casinha onde estavam
abrigados. João é preto, sua família também. Será que isto tem algo a ver? Talvez
tenha, talvez não, pois também ouvi diversas pessoas brancas me contando
histórias muito parecidas.
Daí fico lembrando de
outras histórias ouvidas nestes últimos 105 dias, como o daquele homem que
estava num abrigo, e ajudou a descarregar de um caminhão caixas e caixas e mais
caixas de sobrecoxa de galinha desossada, pitéu caro e raro, e ficou com água
na boca, esperando para comer ao menos umazinha, quando ela fosse servida, só
que naquele abrigo nunca se comeu sobrecoxa de galinha desossada. Para onde
foram aquelas caixas todas? Para um supermercado, ou talvez para os amplos
congeladores de burgueses que fedem?
E lembro mais: da
minha amiga Janete (claro que também não sou tansa o suficiente para dar o nome
verdadeiro da Janete!), que é da APP de uma escola, e que faz poucas semanas
estava na escola e veio uma mãe buscar uma lata de leite para seu bebê. Ela
atendeu à mãe, deu o leite para o qual aquela criança estava cadastrada, e juntou
ao leite algumas caixinhas de água de coco. Nunca estive naquele abrigo e não
sei quem o dirige, mas foi o tal diretor (ou diretora) quem partiu para cima da
Janete: não era para dar a água de coco. Janete já teve suas crianças, sabe que
elas precisam de suplementos além do leite, e rebateu a proibição – por que não
podia dar, se era coisa de doação? Levou uma bronca – não era para dar e
pronto. Fico pensando em qual supermercado deve estar sendo vendida aquela água
de coco proibida, ou em qual geladeira de qual burguês ela está...
São pequenas amostras
do que acontece por aqui por esta cidade de Blumenau. Se fosse contar cada
história que acabo sabendo, mil folhas talvez não fossem suficientes.
E agora estão jogando
comida fora, comida cuja validade venceu! Quantas toneladas estão jogando? Não
sei, mas desta vez não tenho como passar por mentirosa, pois antes de mim a
imprensa radiofônica e televisiva noticiou, com as devidas imagens e tudo –
disseram-me também que saiu em jornais de papel, mas eu, pessoalmente, não
botei os olhos neles, e então não faço afirmações a respeito. Mas o quilo de
arroz que foi negado às crianças de João está lá no lixão da cidade, e tantas
outras coisas, tantas outras! Quando a imprensa começou a noticiar, as
autoridades disseram que era coisinha de nada, comidas que já tinham chegado
vencidas há 105 dias atrás. Uma ova que era! Era a comida que foi negada a
tantos Joões e tantas crianças, brancas e pretas, decerto para se ver quem
podia levar maior vantagem com o que sobrasse.
Sei que você doou, e
você também, e você outro decerto também – e não me esqueço daquele homem de
Salvador que apareceu na televisão, ganhador de salário mínimo, mas que também
conseguiu doar um pouquinho...
Sinto asco de certa
parte da humanidade que é capaz de deixar criancinhas sem um quilo de arroz ou
uma água de coco, para jogar comida no lixo depois. Ai, que asco que sinto!
Blumenau, 08 de março
de 2009.
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e
doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de vinte e quatro livros (o 24º
lançado em 5 de maio de 2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez
edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).
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