domingo, 3 de janeiro de 2016

Recriação da vida


* Por Pedro J. Bondaczuk


O último domingo de 2015 foi chuvoso e... tinha tudo para ser monótono, daqueles dias chatos em que gostaríamos de estar em alguma praia ensolarada ou ás margens de algum lago de sonhos em alguma bucólica cidadezinha suíça, sei lá.. Tinha... mas não foi. Passei-o lendo poesia. Mais especificamente, lendo os livros de Carlos Drummond de Andrade. Não se tratou de nenhuma pesquisa para novo trabalho literário e nem de preparação para fazer alguma palestra em escola, faculdade ou centro cultural. Não havia qualquer obrigatoriedade para essa leitura. Foi por puro prazer que me dediquei a ela.

Minha intenção era, somente, a de saborear palavras bem selecionadas e habilmente manejadas, como se saboreia um delicioso banquete, como, aliás, já havia feito inúmeras vezes e como, certamente, voltarei a fazer sempre que sentir inquietação intelectual e “fome de beleza”.. A casa estava silenciosa, sem visitas e sem a presença dos filhos, cada um à cata do seu lazer preferido. Meu time do coração, a Ponte Preta, não jogou nesse dia, pois o período é de férias dos jogadores. A programação da TV a cabo estava repetitiva, com várias reprises e a da televisão aberta nem pensar, estava ruim como sempre. Contava, como se vê, com toda a disponibilidade de tempo para ser preenchido com o que melhor me aprouvesse. E foi o que me aprouve.

Além de ser poeta (possivelmente medíocre), gosto de ler poesia. Tenho o hábito de fazer a leitura tendo, como pano de fundo, uma trilha sonora. Claro que tem que ser música adequada, e baixa, apenas em surdina. A seleção musical é somente de clássicos, claro, de gênios como Chopin, Beethoven, Bach entre outros. Liguei meu MP4 e como que entrei em transe. Uma delícia!!! Leio poesias, e sempre em voz alta, para saborear a sonoridade das palavras, por prazer, mas também por razões práticas. Faço-o, em parte, como uma espécie de exercício jornalístico. O saudoso jornalista Cláudio Abramo recomendava aos editores – para adquirir o necessário domínio vocabular e o senso de precisão exigidos em uma edição, principalmente para dar títulos às matérias – que tivessem essa espécie de leitura. Ou seja, que lessem versos, principalmente para desenvolver o ritmo. A princípio pensei que se tratasse de brincadeira do mestre. Mas fiz a experiência. E, como sempre, ele tinha razão. Mas não é só isso.

Leio os grandes poetas, sobretudo, por prazer. Especialmente quando se trata de Carlos Drummond de Andrade, de quem tenho todos os livros que publicou, além de vastíssima coleção de crônicas de quando escrevia para o "Jornal da Tarde" e outros jornais, de outras partes do País, cujos textos publicados me foram gentilmente enviados por amigos. No domingo pude fazer, portanto, essa jornada sentimental, esquadrinhando minhas emoções mais íntimas.

Há um jeito muito especial de ler poesia. É um processo de recriação. A cada nova leitura, encontramos significados diferentes nos versos. Descobrimos nuances que antes não havíamos vislumbrado. Saboreamos cada metáfora, como se fosse um delicioso e novo quitute. E quem disse que não são? Nunca o significado é o mesmo. É como se lêssemos um poema diferente, embora seja o mesmo, lido, às vezes dezenas de vezes ou mais.

Pablo Neruda, em "A Palavra", constata em certo trecho (e citei esse genial trecho dessa sua crônica inserida no livro “Confesso que vivi”, um sem número de vezes): "...Vocábulos amados./Brilham como pedras coloridas, saltam como peixes de prata, são espuma, fio, metal, orvalho./Persigo algumas palavras./São tão belas que quero colocá -las todas em meu poema./Agarro-as no vôo, quando vão zumbindo, e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparo-me diante do prato, sinto-as cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas, como frutas, como algas, como  gatas, como azeitonas./E então as revolvo, agito-as, bebo-as, sugo-as, trituro-as, adorno-as, liberto-as/Deixo-as como estalactites em meu poema, como pedacinhos de madeira polida, como carvão, como restos de naufrágio, presentes da onda./Tudo está na palavra..."

É verdade. Nas mãos de artesãos hábeis, esta frágil matéria-prima, que aparentemente dá tão poucos recursos ao artista, permite a construção de mundos nos quais gostaríamos de aportar e viver para sempre, longe da fria e feia realidade do cotidiano. Veja o leitor como o poeta enxerga o aparentemente trivial, nestes versos de Drummond, do poema "Família":

"Três meninos e duas meninas,
sendo uma ainda de colo.
A cozinheira preta, a copeira mulata,
o papagaio, o gato, o cachorro,
as galinhas gordas no palmo de horta
e a mulher que trata de tudo.

A espreguiçadeira, a cama, a gangorra,
o cigarro, o trabalho, a reza,
a goiabada na sobremesa de domingo,
o palito nos dentes contentes,
o gramofone rouco toda a noite
e a mulher que trata de tudo.

O agiota, o leiteiro, o turco,
o médico uma vez por mês,
o bilhete todas as semanas/branco
mas a esperança sempre verde.
A mulher que trata de tudo
e a felicidade".

Pois é, Drummond pintou nada mais que o retrato da vida de cada um de nós, com uma diferença aqui, outra ali, mas que é basicamente assim. Essa mesma que ás vezes nos abate o corpo e angustia o espírito. Essa, eivada de problemas, cujas dimensões costumamos ampliar. Essa, repleta de frustrações, que não resistem à mais simples das análises. Falta-nos, no cotidiano, a visão do poeta. Carecemos do filtro da arte, que de acordo com o compositor Claude Debussy, "é a mais bela das mentiras", mas que nos permite enxergar que a felicidade que procuramos alhures, está onde sempre esteve: aqui, conosco, debaixo do nosso nariz, sem que nem mesmo sejamos capazes de vê-la.


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk



Um comentário:

  1. Só posso aplaudir esse gostoso passeio por esses três retratos da alegria.

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