O pagador de promessas
* Por
Dias Gomes
O homem, no sistema
capitalista, é um ser em luta contra uma engrenagem social que promove a sua
desintegração, ao mesmo tempo que aparenta e declara agir em defesa de sua
liberdade individual. Para adaptar-se a essa engrenagem, o indivíduo concede
levianamente, ou abdica por completo de si mesmo. O pagador de promessas é a
estória de um homem que não quis conceder - e foi destruído. Seu tema central
é, assim, o mito da liberdade capitalista. Baseada no princípio da liberdade de
escolha, a sociedade burguesa não fornece ao indivíduo os meios necessários ao
exercício dessa liberdade, tornando-a, portanto, ilusória. Claro, há também a intolerância,
o sectarismo, o dogmatismo, que fazem com que vejamos inimigos naqueles que, de
fato, estão do nosso lado. Há, sobretudo, a falta de uma linguagem comum entre
os homens. Tudo isso tornando impossível a dignidade humana. São peças da
engrenagem homicida.
Como Zé-do-Burro, cada
um de nós tem suas promessas a pagar. A Deus ou ao Demônio, a uma Idéia. Em uma
palavra, à nossa própria necessidade de entrega, de afirmação. E cada um de nós
tem pela frente o seu "Padre Olavo". Ele não é um símbolo de
intolerância religiosa, mas de intolerância universal. Veste batina, podia
vestir farda ou toga. É padre, podia ser dono de um truste. E Zé-do-Burro,
crente do interior da Bahia, podia ter nascido em qualquer parte do mundo,
muito embora o sincretismo religioso e o atraso social, que provocam o conflito
ético, sejam problemas locais, façam parte de uma realidade brasileira. O
pagador de promessas não é uma peça anticlerical - espero que isso seja
entendido. Zé-do-Burro é trucidado não pela Igreja, mas por toda uma
organização social, na qual somente o povo das ruas com ele confraterniza e a
seu lado se coloca, inicialmente por instinto e finalmente pela conscientização
produzida pelo impacto emocional de sua morte. A invasão final do templo tem
nítido sentido de vitória popular e destruição de uma engrenagem da qual, é
verdade, a Igreja, como instituição, faz parte.
O pagador de promessas
é uma fábula. Sua estória é inteiramente imaginária, não obstante esteja toda
ela construída sobre elementos folclóricos ou sociológicos que exprimem uma
realidade. O sincretismo religioso que dá motivo ao drama é fato comum nas
regiões brasileiras que, ao tempo da escravidão, receberam influências de
cultos africanos. Não podendo praticar livremente esses cultos, procuravam os
escravos burlar a vigilância dos senhores brancos, fingindo cultuar santos
católicos, quando, na verdade, adoravam deuses nagôs. Assim, buscavam uma
correspondência entre estes e aqueles - Oxalá (o maior dos orixás)
identificou-se com Nosso Senhor do Bonfim, o santo de maior devoção da Bahia;
Oxóssi, deus da caça, achou o seu símile em São Jorge; Exu, orixá malfazejo,
foi equiparado ao diabo cristão. E assim por diante. Por isso, várias festas
católicas, na Bahia (como em vários Estados do Brasil), estão impregnadas de
fetichismo, com danças, jogos e cantos de origem africana. Entre elas a de
Santa Bárbara (Iansan na mitologia negra), que serve de cenário ao drama. É
evidente que a Igreja Católica reage a esse sincretismo. E a posição de Padre
Olavo é perfeitamente lógica dentro dos princípios de defesa da religião
cristã, muito embora revele uma intolerância também inerente a esse culto.
Mas o que nos
interessa não é o dogmatismo cristão, a intolerância religiosa - é a crueldade
de uma engrenagem social construída sobre um falso conceito de liberdade.
Zé-do-Burro, por definição, é um homem livre. Por definição, apenas. O que nos
importa é a exploração de que ele é vitima exploração que constitui também um
dos alicerces da sociedade em que vivemos.
O pagador de promessas
nasceu, principalmente, dessa consciência que tenho de ser explorado e
impotente para fazer uso da liberdade que, em princípio, me é concedida. Da
luta que travo com a sociedade, quando desejo fazer valer o meu direito de
escolha, para seguir o meu próprio caminho e não aquele que ela me impõe. Do
conflito interior em que me debato permanentemente, sabendo que o preço da
minha sobrevivência é a prostituição total ou parcial. Zé-do-Burro faz aquilo
que eu desejaria fazer morre para não conceder. Não se prostitui. E sua morte
não é inútil, não é um gesto de afirmação individualista, porque dá consciência
ao povo, que carrega o seu cadáver como bandeira.
(Coleção Dias Gomes,
vol. 1, Os heróis vencidos, 1989).
*
Romancista, contista e teatrólogo, membro da Academia Brasileira de Letras.
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