O condenado
* Por
José do Patrocínio
O seu nome era Manuel
da Mota Coqueiro. Fora, havia três anos, um homem abastado, influência política
de um município, um dos convidados indispensáveis nas melhores reuniões; agora
não era mais do que um padecente resignado mas tido por perigoso e por isso
espionado e guardado solicitamente pela força pública, enquanto que, olhado
como um ente repulsivo, servia de pasto à curiosidade vingativa de uma
sociedade inteira.
Com o andar vagaroso,
porém firme, veio colocar-se no meio da clareira. Acompanhou o sacerdote, que
em uma das mãos tinha um livro e na outra um pequeno crucifixo.
Aos lados desses dois
homens inermes, viam-se o carrasco e oito soldados com as baionetas caladas.
Pairava sobre este
grupo a solenidade da morte.
Alto, magro, com as
faces escaveiradas e ictéricas, marcadas por uma grande mancha arroxeada, as
pálpebras entrecerradas, completamente brancos os compridos cabelos, as
sobrancelhas extremamente salientes e espontadas, e as barbas longas de sob as
quais lhe pendia de volta do pescoço até a cinta, em torno da qual se
enroscava, o baraço infamante: Mota Coqueiro tinha mais a aparência de um
mártir do que a de um celerado.
Cruzados sobre o peito
os braços algemados, a cabeça inclinada, os olhos fitos no chão, imóvel no meio
daquela multidão agitada, que se colocava nas pontas dos pés para melhor
fitá-lo, o seu porte solene, a compostura evangélica do seu semblante faziam
pensar ou na mais requintada hipocrisia, ou no mais inexplicável dos infortúnios.
Ao lado desse rosto,
cuja expressão fora amortecida pela desventura, - contraste enorme, - aparecia
o carão negro, estúpido e truculento do carrasco, surgindo de sob o gorro
vermelho como um vômito fuliginoso da garganta de uma fornalha.
Fuzilava-lhe nas
feições o garbo bestial do crime.
Com a mão esquerda
colocada à ilharga e arqueado o braço seminu, espraiava pela mó de basbaques,
meio aterrorada, o olhar sanhudo, coado através de umas pupilas negras,
borradas numa córnea injetada de sangue.
Pelas narinas carnudas
e achatadas, a sua boçal ignorância aspirava com o ar o alento necessário aos
seus instintos de fera.
Após eles vinham o
juiz municipal, revestido com a toga de magistrado, e o escrivão, trajado de
preto.
Uma linha de praças
fechava o préstito funerário.
O silêncio, instantes
quebrado, foi para logo restabelecido e dentre ele só partia o soar agoureiro
da campa, tangida a badaladas espaçadas, quando o porteiro começou a apregoar
em voz alta a sentença pela qual Manuel da Mota Coqueiro era condenado a sofrer
a pena capital, por ser mandante dos assassinatos de Francisco Beneditino, sua
mulher e seis filhos.
Ao termo da leitura,
soaram os tambores e as cornetas uníssonos com o badalejar lúgubre da campa, e
o préstimo desfilou.
Então, à semelhança de
uma floresta que é tomada de assalto por um tufão e, ao passo que se retorce e
anseia, desfaz-se em sussurros e farfalhos prolongados, o povo, movendo-se para
acompanhar os personagens da medonha tragédia, enchia o espaço de um ruído
confuso.
Era como ouvir-se ao
longe o roncar de uma cachoeira.
Alguns mais exaltados
negavam-se à súplica que lhes era dirigida pelos caridosos irmãos da
Misericórdia.
Desse número era uma
velha que, tendo um dos braços passado ao redor da cintura de uma rapariguinha
morena, de olhos esbugalhados e boquiaberta, via passar o préstito, parada a um
dos cantos da Praça Municipal.
A darmos crédito aos
muxoxos que provocava aos vizinhos, a feia da velha era uma dessas beatas
impertinentes que não se importam de incomodar aos mais, contanto que elas não
sejam ao de leve prejudicadas nos seus com modos.
Quando Coqueiro lhe passava por defronte, a
velha, enrugando ainda mais as enregilhadas pelancas, que outrora tinham sido
faces, taramelou para a companheira:
-Olha aquele pedaço de malvado; vai ali que
parece um santinho. Credo! Que mal encarado!
- Oh! Nhãnhã, coitado,
vai tão triste!
- Cala a boca, tola, resmungou a velha, ao
passo que apertava um pouco mais o polegar e o indicador na cinta da pequena. -
Ter dó dele, te arrenego, tinhoso; é pena que o malvado não tenha no pescoço
tantas vidas quantas arrancou, para espirrarem-lhe todas nas unhas do carrasco.
Deus lhe perdoe, mas está se vendo mesmo que foi ele.
- Ui! - exclamaram noutro grupo. - Que
carrasco tão feio, meu Deus!
- Oito mortes, oito,
entre velhos e crianças, a vida dele só não paga. Eu, cá no meu pensar, entendo
que se devia fazer o mesmo à família dele, para que ele soubesse se era bom!
- Deus te perdoe, Deus
te perdoe! - escapava mais adiante ao anônimo popular.
E o préstito
caminhava, parando, porém, a todas as esquinas para dar lugar à leitura da
sentença.
De cada vez que o
préstito parava, ouvia-se um como cicio partido dos lábios dos sacerdotes e do
condenado.
Uma dessas vezes,
puderam-se distinguir algumas das palavras segredadas pelo ministro de Deus:
- Confesse toda a
verdade, irmão, purifique a sua consciência na hora de comparecer perante Deus.
- Repito, meu padre, não mandei fazer tais
assassinatos.
E duas lágrimas tardas
e volumosas, dessas que só os hipócritas confessos ou os desgraçados sabem
chorar, escorregaram pelas faces cadaverosas do padecente.
Ora envolvido no rufo
rouco dos tambores, ora atravessado pelo badalejar da campa e pelo clangor das
cornetas, o préstito seguia vagarosamente pelas ruas mais concorridas da
cidade, até parar em frente à igreja, onde o pregoeiro, em alta voz, leu ainda
uma vez a sentença irrevogável que devia manchar na cabeça de um homem o nome
de toda a sua família.
Parte do préstito já
estava dentro do templo: algumas das sentinelas, que custodiavam mais de perto
o réu, já transpunham o limiar, quando um incidente inesperado veio pôr em
alarme todos os circunstantes.
Um homem desconhecido,
com as faces macilentas, o olhar esgazeado, as vestes em desordem, e
entretanto, revelando pelo seu traje, pelo próprio desespero, ser um
cavalheiro, rompera à força uma das alas de praças e viera colocar-se em meio
do préstito.
Agarrado pelos
soldados, debatia-se nas suas mãos, exclamando:
- Deixem-me falar; deixem-me falar!
Os pulsos vigorosos
dos agentes puseram-no fora; mas ele, sem conter-se, prosseguia, dizendo:
- Deixem-me falar ao sr. Juiz. Deixem-me! Eu
sei...
É fácil imaginar a
confusão que nesse instante reinou no interior do templo. Os espectadores
redemoinhavam, gesticulavam, apertavam-se em estreito círculo em torno do
desconhecido. Este, vencendo a onda popular, pôde de novo aproximar-se da ala e
caminhava em direção ao magistrado, quando parou repentinamente.
O sentenciado, os
cabelos eriçados, a pele pergaminhada do rosto e os lábios contraídos, meio
erguidos os braços algemados, fitava no desconhecido um olhar profundo, em que
se misturava a súplica e a repreensão.
Todos pasmavam. O desconhecido, como se fosse
instantaneamente petrificado, não deu mais um passo; a cabeça pendeu-lhe como
que humilhada, ao passo que as lágrimas lhe corriam em fios.
O juiz ia talvez ouvir
o desconhecido mas, ao passar pelo sentenciado, este, dirigindo-se ao
sacerdote, murmurou:
- Peça que o deixem ir. É um homem de bem;
estima-me; queria talvez dizer-me na hora da desgraça algumas palavras de
consolo.
O préstito continuou a
entrar no templo. Ninguém buscou interrogar aquele homem que soluçava,
encostado à porta principal da igreja. Respeitou-se-lhe a dor, porque ela
mostrava ser bem profunda e filha de um sentimento generoso.
A tropa descansou as
espingardas, enchendo o recinto sagrado do barulho produzido pelo choque das
coronhas no assoalho.
O setenciador
ajoelhou-se e os seus lábios começaram a ciciar uma prece, e o sacerdote, que
desde o incidente empalidecera ainda mais e tomara um ar ainda mais contrito,
ajoelhou-se também.
Ao mesmo tempo o povo
que enchia o recinto começou a separar-se, abrindo fileiras. Era o
desconhecido, que, trôpego e banhado em lágrimas, deixara a porta e caminhava
em direção à capela-mor.
Chegado junto do
altar, curvou os joelhos e deixou pender a cabeça sobre os seus frios degraus.
Comovido por esta cena,
o sacerdote, inclinando-se para o padecente, disse-lhe, como se desejasse não
ser ouvido por mais ninguém:
- Há entre vós ambos
um segredo sagrado; eu não o quero perscrutar. Resta-me apenas absolver-vos,
meu irmão, em nome de Deus.
- Oh! obrigado,
exclamou o sentenciado, que não pôde mais conter as lágrimas e fitou os olhos
amortecidos na imagem silenciosa do Cristo.
As seis luzes da
banqueta do altar-mor, meio ofuscadas pela claridade do templo, cobriam de tons
sangrentos a lividez do Homem do Calvário. Dir-se-ia que se trocava um
misterioso olhar de inteligência entre os dois sentenciados e que os seus
corações conversavam na lutuosa intimidade de um inaudito sacrifício: tamanha
era a expressão do semblante do réu e tão animadora a atitude do divino mártir.
Entre eles estava baqueada a coragem do desconhecido, completando a desolada
trindade de um martírio inenarrável.
Coisa singular! desses
sofrimentos, o que parecia mais sereno era o do moribundo, que de vez em quando
levantava os braços algemados para embeber o pano da alva nas lágrimas perenes.
A impressão produzida por este quadro sombrio
parecia ter apiedado a multidão, que se mantinha em sincero recolhimento.
Algumas pessoas,
visivelmente comovidas, diziam já:
- Há uma voz que me
diz que o Coqueiro não foi o autor dos assassinatos.
A isto objetavam
outros; mas a maneira pela qual o faziam, as palavras de que se serviam, eram
muito mais comedidas.
Para o desventurado
estava, porém, marcado o destino, e apesar das inocentações de uns e das
acusações de outros, dentro em pouco ele devia desaparecer do número dos vivos.
[...]
O sentenciado chegara
junto ao patíbulo.
Para ajuntar a ironia
à malvadeza, uma bandeja com alguns pratos cheios de confeituras, um cálice e
uma garrafa de vinho generoso foram apresentados ao preso como símbolo da
solicitude social e da máxima e indizível piedade que vem cevar a vítima antes
de imolá-la.
O réu voltou
nobremente o rosto à injúria açucarada dos seus matadores e, ou fosse pela dor
que essa afronta lhe causasse, ou fosse pelo terror inspirado pela vizinhança
do patíbulo, os joelhos vergaram-lhe e teria baqueado se não fosse arrimado
pelo sacerdote.
Não longe deste grupo,
uma face negra de mulher banhava-se em pranto copioso. Era o protesto de uma
raça contra o procedimento de um de seus membros, porque ao passo que a boa da
preta chorava, o carrasco esvaziava um cálice do vinho rejeitado pelo
condenado, e apreciava-lhe o sabor, dando estalinhos com a língua.
Despertado da
prostração, revivido do desânimo pelos soluços da comiseração espontânea
daquela mulher, o réu cobrou de novo forças e voltou-se para a lacrimosa,
dizendo:
- Chora, minha filha, porque eu morro
inocente.
Para abafar a voz do
condenado, as caixas marciais rufaram prolongadamente e fez-se sinal ao
carrasco para começar a sua missão.
O monstro apertou
ainda mais o braço do lívido padecente; puxou-o para si em direção à escada e,
colocando-se depois por detrás dele, fê-lo subir os degraus da forca.
Em baixo, os irmãos da
Misericórdia e os sacerdotes reunidos em torno da cruz, puseram o seu
estandarte em posição de cobrir o sentenciado, caso rebentasse a corda.
Era uma vã esperança:
a corda fora especialmente mandada por uma autoridade elevada da província, e
os abusos da própria confraria inutilizavam a sua intervenção a favor dos
infelizes votados à morte infamante.
O carrasco e o réu
tinham chegado ao tablado. O pregoeiro lei pela última vez a íntegra da
sentença que condenava à morte e às multas da lei o réu Mota Coqueiro, mandante
dos assassinatos de Francisco Benedito da Silva, sua mulher e um filho de
dezoito para dezenove anos, duas filhas maiores de quatorze, duas maiores de
sete e uma de dois para três anos e, finda a leitura, o magistrado ordenou ao
carrasco o cumprimento do seu dever.
O negro instrumento da
morte, depois de conchegar à cabeça encarapinhada o gorro vermelho e
experimentar com violentos puxões a segurança das algemas do preso, tomou-lhe o
capuz, que lhe pendia nas costas, e com ele cobriu-lhe o rosto. Passou a
desenroscar a corda da cintura do padecente e ajustar-lhe o baraço ao pescoço.
Feito isso, conduziu o desventurado para uma pequena escada posta entre o
tablado e a trave; assentou-o em um dos degraus, e foi prender a corda em dois
ganchos de ferro pregados no alto do patíbulo.
Escarranchando-se na
trave, ágil, inclinou-se e, segurando-se nela com um braço, com o outro
empurrou violentamente o padecente, tirando de improviso a escada de sob ele.
O sentenciado ficou suspenso pela corda,
esperneando, agitando os braços amarrados e balouçando como enorme pêndula.
Em um dos vaivéns
dados pelo corpo do sentenciado, os pés do carrasco alcançaram os ombros
daquele.
Colado um pé sobre
cada ombro, o monstro carregava sobre o moribundo e impelia-o em largos
balanços.
Durante toda esta cena
que aterroava os mais exaltados, o negro executor ria a sua fereza através de
uns lábios grossos e roxos.
Talvez sentisse nesse
momento a satisfação de Quasímodo quando se bamboleava no espaço, agarrado às orelhas
do sino grande da Notre Dame.
Esta cena durou o
tempo imenso que duram sempre as cenas horrorosas, minutos que parecem horas.
A um golpe dado na
corda, o corpo do sentenciado bateu em cheio no tablado e o carrasco veio, de
um salto, colocar-se sobre ele, carregando-lhe com a mão sobre a boca.
Estava desafrontada a
sociedade. Rufaram os tambores, cangloraram as cornetas e o carrasco desceu
para recolher-se de novo à fermentação silenciosa dos seus ruins instintos. A
confraria desfilou precedida pela sua bandeira e fechada pela cruz, onde a
cabeça descorada do Cristo parecia ter-se inclinado ainda mais. É que,
desfeiando-a, na história da humanidade redimida negrejava mais uma iniquidade.
Uma hora depois, a
praça do Rocio e as ruas principais de Macaé estavam completamente vazias e a
cidade recaía no seu silêncio habitual.
No tablado do patíbulo viam-se, porém, quatro
homens vestidos de luto e, com um sincero recolhimento, colocavam dentro de um
caixão mortuário o cadáver do justiçado.
Eram os amigos de Mota
Coqueiro que tinham obtido da justiça, para dar a uma cova, os restos que ela
daria à vala comum.
O desconhecido, que
era um dos quatro que seguravam nas argolas do caixão, ao pousá-lo na beira da
cova, disse para Seberg, que chorava:
- Foi um homem de bem
às direitas; e se alguns erros cometeu, o último ato de sua vida paga-os de
sobra.
(Mota Coqueiro ou A
pena de morte, 1877).
*
Jornalista, orador, poeta e romancista, membro da Academia Brasileira de
Letras.
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