Um pai e duas filhas; e eu
* Por Anna Lee
Contar histórias é sempre um
exercício da imaginação. Sejam histórias vividas ou inventadas.
As vividas contêm em si a
multiplicidade de versões que os protagonistas e coadjuvantes dos episódios, e
também os espectadores, são capazes de gerar, em última instância, de inventar.
É velho o ditado que alerta: quem conta um conto aumenta um ponto. E há ainda a
máxima segunda a qual tudo na vida é questão de ponto de vista. Portanto, cada
um olha a vida como quer e, conseqüentemente, a conta também como quer.
Já as histórias inventadas...
bem, as histórias inventadas têm todas as possibilidades a seu dispor e isso é
ser possuidor do mundo – um mundo, que é infinito.
Vivemos todos, ora correndo, ora
andando, ora nos arrastando, cada um num túnel particular, que é fração de uma
trama de túneis paralelos. Todos ansiosos para, no final dos corredores,
depararmos com a cena que, muitas vezes, levamos uma vida inteira para pintar.
Um espetáculo em que aqueles que, em tempos semelhantes aos nossos, correram,
andaram, arrastaram-se e foram nossos vizinhos de túneis em suas presenças
invisíveis, porém sentidas, correspondam aos papéis que lhes designamos.
E é aí que a grande questão se
coloca: nem sempre os vizinhos estão dispostos a atuar em nossos palcos.
Afinal, fizeram seus próprios espetáculos nos quais, inclusive, nos reservaram
papéis.
O pai das duas meninas era um
inventor de histórias e, mais, de vida.
Teve um dia em que a caçula,
aborrecida com o barulho do pintinho que o pai havia comprado na feira para
agradar a irmã, aproveitou enquanto todos dormiam e afogou o bichinho na
banheira para ver se ele sabia nadar. O pai, na frente de todos, fez o papel de
pai que lhe cabia e indignou-se com a travessura da pequena. Às escondidas, deu
um bombom à menina pelo benefício prestado.
E teve o dia em que mesmo
percebendo que a mais velha arranjara uma dor de última hora para não ir à
escola, porque não tinha estudado para prova, a apoiou e deu permissão para que
ficasse em casa. Foi além. Ele próprio tratou de matar o trabalho para passar a
tarde com a filha comendo banana frita e vendo revistas.
Nos passeios de domingo pela
praia, o pai costumava deixar cair notas de dinheiro para que as meninas
achassem. Não havia nada que o deixasse mais radiante do que o contentamento
que, nessas ocasiões, via estampado no rosto de cada uma das filhas. Ele também
fez de tudo para que elas não descobrissem a falácia da existência de Papai
Noel. Foi o homem mais infeliz do mundo no Natal em que, pela primeira vez, ao
olhar os presentes junto à árvore, não encontrou a magia de outros anos. As
meninas tinham ido à loja com ele, sabiam o preço dos brinquedos, o prazo de
garantia, o nome do fabricante e que a nota fiscal dava o direito de concorrer
ao sorteio cujo primeiro prêmio era um carro.
Quando eu soube dessas histórias
pelo pai, as meninas já eram mulheres, cuidavam de suas vidas, e ele ainda
estava lá no tempo da infância que acabara para elas, mas não para ele.
Lembro-me como se fosse hoje. Brotou em mim um profundo amor por aquele homem
de alma de criança que nunca cresceu e já não tinha mais tempo para isso.
Desejei que ele fosse meu pai, principalmente, ao ouvir das filhas, anos
depois, versões completamente diferentes de tudo o que ele havia me contado.
Justiça seja feita, comigo e com ele. Devo dizer que, de
certa forma, ele foi meu pai. Ele é. Mesmo que seja na minha imaginação, no meu
túnel, que é sombrio e solitário.
*Jornalista, mestranda em Literatura
Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da
Morte"/Objetiva, ganhador
do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na
Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.
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