domingo, 11 de maio de 2014

Um pai e duas filhas; e eu

 * Por Anna Lee

  
Contar histórias é sempre um exercício da imaginação. Sejam histórias vividas ou inventadas.

As vividas contêm em si a multiplicidade de versões que os protagonistas e coadjuvantes dos episódios, e também os espectadores, são capazes de gerar, em última instância, de inventar. É velho o ditado que alerta: quem conta um conto aumenta um ponto. E há ainda a máxima segunda a qual tudo na vida é questão de ponto de vista. Portanto, cada um olha a vida como quer e, conseqüentemente, a conta também como quer.

Já as histórias inventadas... bem, as histórias inventadas têm todas as possibilidades a seu dispor e isso é ser possuidor do mundo – um mundo, que é infinito.

Vivemos todos, ora correndo, ora andando, ora nos arrastando, cada um num túnel particular, que é fração de uma trama de túneis paralelos. Todos ansiosos para, no final dos corredores, depararmos com a cena que, muitas vezes, levamos uma vida inteira para pintar. Um espetáculo em que aqueles que, em tempos semelhantes aos nossos, correram, andaram, arrastaram-se e foram nossos vizinhos de túneis em suas presenças invisíveis, porém sentidas, correspondam aos papéis que lhes designamos.

E é aí que a grande questão se coloca: nem sempre os vizinhos estão dispostos a atuar em nossos palcos. Afinal, fizeram seus próprios espetáculos nos quais, inclusive, nos reservaram papéis.

O pai das duas meninas era um inventor de histórias e, mais, de vida.

Teve um dia em que a caçula, aborrecida com o barulho do pintinho que o pai havia comprado na feira para agradar a irmã, aproveitou enquanto todos dormiam e afogou o bichinho na banheira para ver se ele sabia nadar. O pai, na frente de todos, fez o papel de pai que lhe cabia e indignou-se com a travessura da pequena. Às escondidas, deu um bombom à menina pelo benefício prestado.

E teve o dia em que mesmo percebendo que a mais velha arranjara uma dor de última hora para não ir à escola, porque não tinha estudado para prova, a apoiou e deu permissão para que ficasse em casa. Foi além. Ele próprio tratou de matar o trabalho para passar a tarde com a filha comendo banana frita e vendo revistas.

Nos passeios de domingo pela praia, o pai costumava deixar cair notas de dinheiro para que as meninas achassem. Não havia nada que o deixasse mais radiante do que o contentamento que, nessas ocasiões, via estampado no rosto de cada uma das filhas. Ele também fez de tudo para que elas não descobrissem a falácia da existência de Papai Noel. Foi o homem mais infeliz do mundo no Natal em que, pela primeira vez, ao olhar os presentes junto à árvore, não encontrou a magia de outros anos. As meninas tinham ido à loja com ele, sabiam o preço dos brinquedos, o prazo de garantia, o nome do fabricante e que a nota fiscal dava o direito de concorrer ao sorteio cujo primeiro prêmio era um carro.

Quando eu soube dessas histórias pelo pai, as meninas já eram mulheres, cuidavam de suas vidas, e ele ainda estava lá no tempo da infância que acabara para elas, mas não para ele. Lembro-me como se fosse hoje. Brotou em mim um profundo amor por aquele homem de alma de criança que nunca cresceu e já não tinha mais tempo para isso. Desejei que ele fosse meu pai, principalmente, ao ouvir das filhas, anos depois, versões completamente diferentes de tudo o que ele havia me contado.

Justiça seja feita, comigo e com ele. Devo dizer que, de certa forma, ele foi meu pai. Ele é. Mesmo que seja na minha imaginação, no meu túnel, que é sombrio e solitário.

*Jornalista, mestranda em Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.




Nenhum comentário:

Postar um comentário