Vizinhos mal-cheirosos
* Por
Mara Narciso
O prédio do antigo
Ginásio Diocesano, na Avenida Coronel Prates foi ao chão. Não era uma
arquitetura bonita, nem feia. Quando caiu, era a história da cidade que
despencava em escombros. Pessoas que atingiram bom nível na escala social
estudaram lá. Os professores davam aulas de terno, um hábito de então. O
diferente era o grau de instrução dos mestres. Tinham curso superior, sendo
padres, advogados, médicos e farmacêuticos. O ambiente escolar era moderno para
a época, embora, certa vez, um dos padres, ao se referir numa comemoração, na
qual foram usadas pela primeira vez fofocas abaixo dos joelhos para fazer
ginástica, num discurso em 1948 disse: “nota chocante e dissonante da festa foi
o uniforme das meninas”.
Depois de fechada a escola,
o local serviu de prefeitura e de seminário por anos. A edificação vistosa
ficava na parte da frente, e atrás havia um casario mais simples, entre
mangueiras, palmeira e imensos muros que percorriam todo o quarteirão, indo de
uma das avenidas principais de Montes Claros até a Rua Irmã Beata. Era
subutilizado, semi-abandonado. Na verdade, ninguém dava muita atenção ao uso
daquilo lá. Mas o dinheiro chega para acabar com a calmaria, agitar os ventos e
o sangue dos saudosistas. Em poucos dias a poeira levantou, o prédio
desapareceu, a terra vermelha ficou exposta, as mangueiras saíram aos pedaços,
e a palmeira, com dezenas de anos, saiu deitada, praticamente sem raiz,
disfarçada de moribunda, numa carreta. Fingiram que ela seria transplantada
noutro lugar.
Já era tarde, mas os
ambientalistas ainda protestaram, demonstrando que fora um absurdo arrancarem a
história da cidade e a transformarem em nada, em troca de empregos. Muito
barulho após a demolição, mas o ponto alto foi a pressa. Asfalto lateral
estragado, pontilhado de placas de terra vermelha, e em poucas semanas, já se
via horrorosas paredes de pré-moldados subindo num trabalho frenético e
incessante. Nem de noite a construção parava. Era preciso vencer o tempo, e
produzir logo algo irreversível. O argumento da troca de história por um
trambolho eram os milhares de colocações diretas e indiretas. O subsolo
encheu-se de vagas na garagem, adoçando a boca dos que reclamavam dos problemas
de trânsito em ruas tradicionalmente estreitas. Alguns choramingavam o
edifício, outros as mangueiras, ainda outros o trânsito, e a maioria berrava
contra o barulho e a sujeira. Tudo inútil.
O capital calou a
todos. Logo os descontentes se conformaram com a substituição do decrépito
prédio por outro de feiúra inominável, pois o caixote do supermercado não tem
paralelo em termos de horripilância arquitetônica. Afora o isolamento e o
perigo para os passantes noturnos, por ser um paredão único. Para dar um toque
montes-clarense, foram colocadas em seu interior fotos da Catedral, de Mestre
Zanza e de Darcy Ribeiro. Isso tornou roucos os descontentes. Mas, talvez não
estejam de todo resignados. Há uma multidão de ambulantes, ainda que haja uma
placa (seria legal?), proibindo a atividade deles, vendendo frutas na porta do
estabelecimento. Ocupam os passeios, deixam detritos, de alguma forma buscam
seus ganhos, mas perturbam quem passa.
A rua lateral está
inteiramente ocupada por caminhões baú de médio porte. Estes ficam esperando
para ser carregados com feiras em caixotes de plástico verdes, em intermináveis
filas. O normal é colocarem caixas demarcando o território, e não há espaço
para ninguém além deles. No fundo do supermercado há um portão que não cessa
seus estrondos num abre e fecha por todo o dia. Cada abrir e fechar faz tremer
o quarteirão. Mais barulho devido ao motor de outros baús gigantes trazendo
alimentos, de forma incessante. Entram e saem da garagem, o portão rasga a rua
estrepitosamente de instante a instante, mantém o refrigerador ligado, e ao dar
a ré, o apito dispara ensurdecendo os vizinhos. Difícil a esquina ter menos do
que oito a dez caminhões, simultaneamente. Não há nenhum constrangimento em
invadir a contramão ameaçando produzir desastres, além do grande transtorno e
parada do trânsito. O barulho permanente é tudo de mal, mas o lixo produzido, o
mau cheiro e o consumo excessivo de água são incômodos insuportáveis. O impacto
ambiental é bem maior do que supõe um leigo interessado na preservação do
meio-ambiente. Além da limpeza do salão da loja, que não é pequeno, o maior
consumo de água se dá no restaurante, açougue e padaria. A produção de esgoto
desequilibra o poço de visita do cruzamento. Com frequência acontece
entupimento, que obriga a Copasa a passar o dia desobstruindo o local,
aspirando e retirando montanhas de gordura provenientes do supermercado. Esses
fatos alteram a vida ao redor, dos de perto e dos não de tão perto. O reflexo
da excessiva vazão de esgoto afeta o esgotamento dos prédios, levando ao
entupimento e refluxo para dentro das garagens.
Não é inominável! O
nome disso é progresso, e a empresa que cala a boca dos meios de comunicação
chama-se Bretas.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
É, amiga Mara, com o dinheiro ninguém pode. Texto que denuncia e faz pensar! Abraços.
ResponderExcluirNinguém tem coragem nem de mencionar, e se tem, ninguém publica. Estamos todos com a língua cortada.
ResponderExcluir