sexta-feira, 8 de março de 2013


O Papa antes de Bento XVI

* Por Urariano Mota

Bento XVI cometeu uma renúncia, deixou de ser papa  nesta última quinta-feira, isso todo o mundo já sabe. O que ninguém sabe é um acontecimento herege e demoníaco que ocorreu durante a visita do outro Sua Santidade ao Recife.   Assim foi.
O papa anterior, João Paulo II, atlético e viageiro, visitava Pernambuco. Por coincidência, estávamos na casa do Gordo às 4 da tarde, como na hora de Brasília da renúncia  deste último Bento XVI. Ora. Enquanto Ele rezava a santa missa às 17 horas e 10 minutos, a serem verdadeiras as informações do arquivo do Jornal do Commercio, aqui relatadas:

“Uma grande manifestação de fé mobilizou a cidade na passagem do papa João Paulo II pelo Recife, nos dias 7 e 8 de julho de 1980. Já na Base Aérea, a recepção calorosa do então arcebispo de Olinda e Recife, dom Hélder Câmara, plenamente correspondida por Sua Santidade no abraço espontâneo ao arcebispo, deu o tom da visita papal, que durou menos de 24 horas... no altar erguido sobre o Viaduto Joana Bezerra, o Santo Padre celebrou, às 17h10, uma missa campal acompanhada por aproximadamente 300 mil pessoas, que se acotovelavam no local desde o início da tarde”.

Durante e antes, eis o que ocorreu diante das imagens da transmissão ao vivo da presença do Santo Homem na tevê. Na sala da aprazível e pobre casa em Rio Doce, estávamos eu, o Gordo, Marcão, Tarcizo Galego, Zé Correia, Semadá, Marcelino e Givaldo. Em uma palavra, uma gangue. E, claro, a mãe do Gordo, dona Dagmar, mais a irmã do Gordo, irmãos, e sobrinhos, tudo isso de mistura a nós. Estávamos todos bebendo. Bebíamos, com paciência e método, porque o melhor estava por vir: o Papa !

Dona Dagmar sempre soube que não acreditávamos em Deus. Mas esse conhecimento, ainda que não trouxesse uma aceitação de nossas ideias, possuía pelo menos uma transigência, um conviver sábio, porque éramos, devíamos ser, bons meninos. Ela desconfiava que apesar de ateus não podíamos ser tão maus assim, porque afinal éramos amigos do seu filho, o seu mais velho filho, o homem que pelo estudo, pela instrução, conseguira tirar a família da extrema pobreza. O Gordo, o senhor Antonio Luís da Silva, era graduado em História e funcionário do Banco do Nordeste do Brasil, onde ingressara por concurso público.
Enquanto a missa não vinha, era possível ao mesmo tempo a televisão ligada e os frevos em discos da Mocambo, em vinil, a rodar. Mas quis o Diabo que a tarde avançasse.

Pois quis o demo então que às cinco em ponto da tarde todos entrássemos em silêncio, forçado, em respeito a Dona Dagmar, senhora católica, crente dos poderes e infalibilidade papal. Assinamos como por encanto uma trégua, um acordo, sem papel. Os frevos pararam de rodar, e ficamos todos, em tensão máxima, aos murmúrios, pois o respeito àquela mulher do povo assim exigia. Escrevi certo? Eu creio que sim, porque o respeito somente poderia ser a ela, nunca ao Papa nem a seus sacrossantos dogmas, está visto.

Por isso o Diabo, os demônios, em nova conjura assestaram e acertaram um tento na pessoa de um dos nossos. Em mim, estava escrito. No minuto santo, magno e piedoso em que o Papa se preparava para distribuir a hóstia em santa comunhão, o que faz o Demônio? Ele me toma o corpo, a mão, o espírito, e faz com que eu me dirija em silêncio à cozinha, e lá encha vários copos de aguardente, ponha-os em uma bandeja, e arranque pedaços de pão do armário, divida-os bem divididos, e, assim posto em papel de sacerdote das trevas, retorne à sala e distribua o álcool e o pão hereges enquanto Deus era servido na televisão. Marcão, Semadá, Givaldo, Marcelino, Zé Correia, todos comungaram. Mas, safados, comungaram inocentes, alheios e alienados do instante da hóstia consagrada do Papa. Melhor dizendo, beberam, com toda educação e respeito. Eu, o demônio, que suportasse as consequências.

O Gordo me contou o resultado disso depois, longe da cena do crime, ao fim de uma semana:
- Minha mãe me chamou naquele dia para a cozinha e me disse: “olhe para as minhas mãos”. As mãos de 
Dona Dagmar estavam tremendo.

Somente muito tempo depois pude voltar à casa do Gordo. Dona Dagmar fez de conta que de nada mais se lembrava. Mulher sábia, a perturbação no reencontro foi minha.

E pulo até esta quinta-feira. Anunciam os jornais que Bento 16 escreverá o seu último tuíte minutos antes de sair do papado. Do alto ou do baixo desta coluna, quero dizer, do céu ou do inferno, antecipo de imediato a última mensagem do Papa, com toda a  eloquência do tuíte: fui.

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

2 comentários:

  1. Como diria minha santa mãezinha: "herege". Como duvidar da santidade desse santo homem? Ou como diria meu professor de Sociologia: "ímpio"! Pelo sim, pelo não, vejo como o final de um reinado. Pena que as decisões papais acabam chegando até mim, pois tenho amigos que sofrem confusos com a determinações do papa, sempre de cunho sexual, é claro.

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  2. Foi um espetáculo inesquecível para o nosso povo pernambucano (principalmente os católicos). A multidão gritava: "João, João, houve um engano, além de polonês, você é pernambucano - "João, João, João, você é nosso irmão". Quem não se lembra?

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