O Freud “escritor”
As pesquisas de Sigmund
Freud, que resultaram nos fundamentos da Psicanálise e, sobretudo, seus livros
(sua obra completa está reunida em 24 volumes que podem ser adquiridos até pela
internet, na Amazon e em outras tantas empresas de e-commerce), foram
considerados, e por muito tempo, pela maior parte da classe médica, como apenas
obras de ficção. Eram encaradas como Literatura e nada mais. Creio que isso se
deveu, basicamente, à desinformação a propósito dos seus estudos e da lógica
das suas idéias.
Claro que ser
considerado escritor não é demérito para ninguém. E também não o seria para
Freud. Muitos, que sequer o são, sonham em ser (provavelmente iludidos pelas
supostas vantagens que esse status possa lhes conferir). Os que não davam o
devido valor às suas pesquisas ignoravam (ou faziam questão de ignorar) que
antes e acima de tudo, o Pai da Psicanálise era médico, com vasta experiência
em tratar de pacientes, seguindo os trâmites e procedimentos característicos da
sua profissão.
Quem nunca leu nenhum
dos livros de Sigmund Freud questiona-me, amiúde, sempre que o assunto vem à
baila, se ele era, pelo menos, bom escritor. Entendo que sim. Tinha todas as
características de um competente comunicador. Era claro, meticuloso e correto
na exposição das idéias. E, sobretudo, conseguia prender, com perícia e criatividade,
a atenção dos leitores, mesmo dos que discordavam de suas proposições o que,
convenhamos, nem sempre é fácil. Entre seus livros destaco: “A interpretação
dos sonhos”, “Sobre a psicopatologia da vida cotidiana”, “Um caso de histeria.
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos”, “Os chistes e
sua relação com o inconsciente” e vai por aí afora.
Além de escrever bem, Freud tinha profundo respeito
pelos escritores e, notadamente, pelos poetas. Detectei várias de suas
declarações a propósito, todas respeitosas, quando não elogiosas, a esses
artífices da palavra. Uma delas é esta, que considero a mais representativa: “Devem
estar lembrados de que eu disse que o indivíduo que devaneia oculta cuidadosamente
suas fantasias dos demais, porque sente ter razões para se envergonhar das
mesmas. Devo acrescentar agora que, mesmo que ele as comunicasse para nós, o
relato não nos causaria prazer. Sentiríamos repulsa, ou permaneceríamos
indiferentes ao tomar conhecimento de tais fantasias. Mas quando um escritor
criativo nos apresenta suas peças, ou nos relata o que julgamos ser seus
próprios devaneios, sentimos um grande prazer, provavelmente originário da
confluência de muitas fontes. Como o escritor o consegue constitui seu segredo
mais íntimo”.
Obviamente, não foi apenas isso o que escreveu a
esse respeito. Na sequência desse mesmo texto, por exemplo, Freud afirmou: “A verdadeira ars poetica está na técnica
de superar esse nosso sentimento de repulsa (aos devaneios), sem dúvida ligado
às barreiras que separam cada ego dos demais. Podemos perceber dois dos métodos
empregados por essa técnica. O escritor suaviza o caráter de seus devaneios
egoístas por meio de alterações e disfarces, e nos suborna com o prazer
puramente formal, isto é, estético, que nos oferece na apresentação de suas
fantasias. Denominamos de prêmio de estímulo ou de prazer preliminar ao
prazer desse gênero, que nos é oferecido para possibilitar a liberação de um
prazer ainda maior, proveniente de fontes psíquicas mais profundas. Em minha
opinião, todo prazer estético que o escritor criativo nos proporciona é da
mesma natureza desse prazer preliminar,
e a verdadeira satisfação que usufruímos de uma obra literária procede de uma
libertação de tensões em nossas mentes. Talvez até grande parte desse efeito
seja devida à possibilidade que o escritor nos oferece de, dali em diante, nos
deleitarmos com nossos próprios devaneios, sem auto-acusações ou vergonha. Isso
nos leva ao limiar de novas e complexas investigações”.
Freud foi ainda mais
longe. Constatou: “Aonde quer que eu vá, eu descubro que um poeta esteve lá
antes de mim”. Ou seja, confere a esses artistas caráter de pioneirismo no
entendimento das emoções e, principalmente, do que as motiva. E pensar que há
tanta gente que considera poesia coisa
inútil e sem valor prático e que, por isso, não cultiva o saudável (e
delicioso) hábito de ler poemas! Não sabem o que estão perdendo.
Outra constatação que
fez, ainda a propósito de escritores, com a qual concordo (e por experiência
própria) foi sobre o que motiva as pessoas a escreverem. Afirmou: “Ninguém
escreve para ganhar fama, que, de qualquer maneira, é coisa transitória, ou
para atingir a imortalidade. Seguramente, escrevemos em primeiro lugar para
satisfazer alguma coisa que se acha dentro de nós, não para as outras pessoas.
É claro que, quando os outros reconhecem os nossos esforços, a satisfação
interior aumenta, mas, mesmo assim, escrevemos primeiramente para nós mesmos,
seguindo um impulso que vem de dentro”.
Não posso jurar, óbvio,
que a motivação de “todos” os escritores seja esta, ou apenas esta. Posso
assegurar, todavia, que a minha é. Escrevo, basicamente, para minha própria
satisfação, para, como costumo classificar (até em tom de galhofa) “exorcizar
meus demônios interiores”, meu instintivo ID. Procuro ser o mais meticuloso e
detalhista possível, mas não por temor do ridículo ou esperando aplausos de uma
platéia que sequer conheço e provavelmente jamais conhecerei. É lógico que, se
eventualmente eu conseguir fama (a positiva, sem dúvida) com meus escritos e se
eles, de quebra, engordarem minha conta bancária, não serei refratário e nem
ficarei indiferente a tais vantagens. Mas nenhuma delas se iguala e nem é mais
atrativa do que a intraduzível satisfação íntima de haver produzido textos de
primeiríssima qualidade, que passem incólumes pelo meu implacável e severíssimo
crivo e dos quais eu venha a me orgulhar.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Risada..."implacável e severíssimo crivo". Adorei! Um leitor do seu quilate, mais que rigoroso, escreveu, releu, aprovou e enviou. Agora é tarde para arrependimentos. E o melhor, quem lê gosta de tê-lo feito.
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