Nuestra América seguirá...
* Por Elaine Tavares
Ele
poderia ser tudo de ruim nessa América baixa: milico, nacionalista, populista.
Exemplos já vivenciados, com grotescos resultados. O corpo grandalhão, a voz tonitruante,
o enfrentamento sem papas na língua com o império. Típico de um bravateiro.
Mais um dos tantos que já passaram por "Nuestra América". Assim,
melhor era colocar as barbas de molho. Mas, o tempo foi passando e o milico,
outrora golpista, foi se constituindo um dirigente capaz. O exército, que
poderia existir para massacrar o povo, começou a atuar no trabalho comunitário.
Criaram-se as missões, para as quais as pessoas foram chamadas a participar. E
a Venezuela, que desde a derrota de Bolívar vinha sendo governada por
predadores das riquezas do povo, começou a se levantar. Aos poucos, aqueles que
sempre tinham vivido como párias, foram se enchendo de dignidade. Dirigiam o
que começou a ser chamada de "revolução bolivariana", porque Chávez
chamara para si o discurso do velho libertador, Simón. A Pátria Grande começava
a andar através da Venezuela, outra vez soberana.
Foram 14
anos com Chávez. Um tempo bom. Chamado de ditador, ele foi talvez o dirigente
que mais passou pelo crivo do voto popular. Nenhum outro no mundo. Eleito
presidente, ele prometeu uma nova Constituição. Chamou o povo para escrevê-la,
depois a colocou em plebiscito. Venceu. Com a nova Constituição colocou-se
então à disposição de outra eleição, já submetido à nova carta. Venceu. E assim
foi. A oposição tentou um golpe. O povo foi às ruas e o resgatou. Depois, a
oposição chegou a conseguir as assinaturas pedindo a revocatória, a destituição
do presidente. E isso é possível num país que agora tem como poder máximo o
poder popular. Chávez submeteu-se outra vez à eleição. Venceu. Eleito três
vezes presidente pelo voto da maioria das gentes. E ainda assim, os inimigos
insistindo em chamá-lo de "totalitário".
Pois o
"totalitário" governou com transparência, com liberdade, respeitando
as leis burguesas. Não fez uma revolução armada, não aplastou os inimigos. Pelo
contrário. Eles lá estão, na Venezuela, tramando dia e noite, na claridão do
dia. Nunca foram molestados. Contra eles apenas a lei, a mesma lei que eles
próprios fizeram. Só que para a direita que sempre comandou a Venezuela, a lei
só valia quando fosse para seu bem. Quando uma empresa de comunicação perdeu a
outorga por não cumprir a lei, andou por aí a denunciar: "censura,
censura". Mais uma vez a má-fé. Mas, o povo atravessou tudo com força e
participação. E o milico serviu às gentes, o nacionalismo caminhou para a
soberania e o populismo foi hegemonizado pelos trabalhadores.
A
Venezuela nova, popular, nacional, soberana ensinou sobre generosidade e
integração. Derrotou a Alca, proposta estadunidense de nova colonização, criou
a Petro Caribe, com a qual começou a distribuir equitativamente o petróleo,
ajudando as pequenas nações da América Central e do Caribe, criou a Telesur,
uma televisão latino-americana, o Banco do Sul, outra proposta de crédito às
nações que ainda amargam a dependência. O país era como uma locomotiva
novidadeira, derrotando o império, abrindo novos caminhos, espalhando a
solidariedade de classe. E, devagar, porque afinal foram séculos de exploração
e miséria, foi reconduzindo as gentes para a vida digna, na qual a participação
era a pedra de toque.
Na
Venezuela de agora são as pessoas que decidem as coisas. Na luta de classes
diária. No enfrentamento cotidiano com a oposição. Vencendo dia-a-dia um leão.
Chávez era o condutor. nem herói, nem pai, nem mito, nem nada. Um homem, nada
mais, um companheiro. Um homem que caminhava com sua gente em busca de um
esperado "meio-dia". Agora o condutor desse novo "trem"
latino-americano morreu. para alguns, tão esperada morte. E chorar por ele não
é, como dizem alguns, mitificá-lo de forma personalista. Chorar por Chávez é
chorar pela ausência desse homem que, com tanta valentia, empreendeu a virada
latino-americana. Um momento único na história desse continente. Nunca jamais vivido,
a não ser nos sonhos de Martí, Sandino ou Bolívar. Ele merece essa reverência,
com todas as suas contradições.
A vaga
vermelha que ocupa as ruas da Venezuela nesses dias de dor é a prova de que
Chávez era muito mais do que um homem amado. É a constatação da riqueza desses
14 anos com ele à frente do país. Não de forma solitária ou ditatorial, mas com
as gentes, através das dezenas de missões que estão encarnadas na vida de cada
venezuelano. Alfabetização, saúde, moradia, comida, segurança, tudo avançando,
devagar, mas de forma segura. A Venezuela não rompeu com o capital, é fato.
Ninguém jamais vai apontar o governo de Chávez como um governo socialista. Não
o era. Tinha rasgos socialistas, estava pavimentando o caminho, e isso não é
coisa para dez anos. Ainda mais quando é assim, sem revolução radical.
A morte
de Chávez agora já não importa. Foi-se o homem, frágil, sua casca corporal.
Ficam as ideias, os sonhos, as esperanças e, sobretudo, as concretudes, as
coisas feitas, definidas, assentadas. O comandante tinha suas contradições,
seus arroubos mas, ninguém pode negar, fez pela América Latina o que ninguém
jamais fez ao recuperar esse sentido de união, de integração, de fortaleza e
soberania. Só isso já valeria sua passagem breve por esse mundo. Mas, ele fez
mais. Educador, amigo, dirigente seguro, articulador, generoso, ardente,
apaixonado. Tudo isso fazia dele uma figura de destaque no processo dessa nova
América Latina que se conforma lentamente.
Agora é
seguir o caminho, colocar à prova se o que havia era apenas Chávez ou se esses
14 anos conseguiram realmente formar um povo capaz de caminhar com as próprias
pernas. Tudo está para ser escrito. Um novo capítulo da história da Venezuela e
da América Latina. Vem aí uma nova eleição e o poder popular dará seu veredito.
Não será uma coisa simples, pois as forças reacionárias estarão agindo com
todas as armas: Intrigas, poder econômico, armas, tumultos. Recuperar a riqueza
da Venezuela, tirá-la da mão do povo, é ponto de honra para a elite predadora,
sempre à espreita com seus parceiros de fala inglesa.
Para mim,
desde o sul do Brasil, resta a torcida para que todo o sonho bolivariano que
foi constituído nesses 14 anos siga adiante, com força, com a participação
concreta das gentes. E hoje, irmanada ao povo da Venezuelana que toma as ruas
do seu país para honrar o amado presidente, igualmente me rendo à dor pela
perda de um homem que, desde sua singularidade, ajudou a dar outra cara para
essa nossa Pátria Grande. Mas, fundamentalmente, rendo graças por ter vivido
esses tempos, por ter pisado na Venezuela bolivariana e ter experimentado a
força de um poder verdadeiramente popular.
Aos
inimigos que celebram sua morte fica o recado da história. O que morre é o
homem. O caminho semeado de ideias e sonhos haverá de florescer, porque,
afinal, os semeadores somos todos nós. E seguiremos! Porque a luta de classes
está mais do que viva nesta Abya Yala.
*
Jornalista de Florianópolis/SC
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