Mil meu com mil teu
* Por José Ribamar Bessa Freire
- Pinto porque a vida dói - disse um dia Iberê Camargo. Lembrei do
artista plástico gaúcho agora, no momento em que completo mil textos publicados
na mídia impressa. Este aqui é o milésimo. Por que escrever tanto? Talvez
porque a vida dói e uma forma de tornar a dor suportável é manifestar tal sentimento,
seja com pincel e tinta, seja com letra e palavras. Ou através da voz, do som,
da música, do corpo.
Diante de pergunta similar feita em entrevista no canal de televisão France
Culture, em 1990, o sociólogo
Pierre Bourdieu respondeu:
- Escrevo, em primeiro lugar, porque isso me dá, psicologicamente, muito
prazer. Além disso, porque fui um jovem rebelde e espero continuar sendo um
velho rebelde. Essa foi a forma que encontrei de ser fiel à imagem que tenho de
mim mesmo. Pode parecer narcisismo, mas é assim. O mundo social seria
insuportável para mim, se eu não fosse capaz de me indignar.
Ele morreu rebelde, depois de sugerir que a gasolina que move a escrita,
pelo menos a sua escrita, é o descontentamento, a necessidade de combater as
injustiças do mundo. Quem escreve com essa perspectiva, cavalga as palavras da
mesma forma que Dom Quixote encilhava o Rocinante, embora Carlos Drummond nos
ensine que as palavras "são muitas, eu pouco" e que, por isso, sendo
elas indomáveis, "lutar com palavras é luta mais vã". O poeta, porém,
relativiza o pessimismo, acrescentando: "entanto lutamos mal rompe a
manhã".
Outro tipo de motivação foi apresentada por Júlio Cortazar, eu acho, mas
estou com preguiça de verificar no Google. Li em alguma parte que o escritor
argentino ou outro profissional da palavra teria dito alguma coisa assim:
"Escrevo para descobrir o que penso", destacando que o ato de
escrever o ajudava a organizar seu pensamento.
Existem motivações mais prosaicas, mas igualmente legítimas. Há quem
escreva pensando com isso conquistar namoradas (os) ou ganhar uns trocados,
outros ainda escrevem como quem dá aulas, com o furor pedagógico de
compartilhar o que sabe, todos com a esperança de encontrar leitores com quem
compartilhar as dores, as dúvidas ou as certezas.
Digno de nota
O primeiro texto que publiquei num jornal nasceu de uma dor, de uma
raiva. Ficou fora da lista dos mil, porque não consegui localizá-lo. Foi em
1964 ou 1965, quando eu estudava o curso pedagógico, no Instituto de Educação
do Amazonas. No IEA velho de guerra, fui aluno de excelentes professores como
Orígenes Martins, Carlos Eduardo Gonçalves, Mercedes Ponce de León, Isis
Falcone, José Braga, Garcitylzo do Lago, Dilma Montezuma e mais alguns poucos
que nos transmitiram o prazer de dar aulas.
A diretora do IEA, em plena ditadura militar, era dona Neusa Ferreira,
arbitrária, autoritária, vingativa, perseguidora. Acontece que o curso era
noturno e houve um apagão geral na cidade. Dona Neusa, moralista, temia que as
alunas fossem bulinadas. Por isso, ordenou a retirada dos alunos e fechou-se lá
dentro com as alunas. Lá fora, uma multidão de marmanjos ficou à espera de
namoradas, irmãs, vizinhas.A diretora gritava, ordenando que fôssemos embora.
Aproveitamos a escuridão para vaiá-la e xingá-la. Ela chamou a polícia. O pau
comeu na casa de Neusa.
Depois de muito sopapo e até de estudante preso, como a luz não voltava
e a noite avançava, ela liberou o mulherio já quase de madrugada e eu, enfim,
pude acompanhar minha irmã Dile de volta à casa, onde havia uma velha máquina
de escrever. À luz de vela, escrevi um texto horroroso, que começava assim, com
um chavão: "Fato digno de nota ocorreu na noite de hoje...". De
qualquer forma, consegui relatar o fato com relativa fidelidade, ridicularizando
dona Neusa, o que mitigou a dor e a raiva.
Assinei embaixo do que escrevi e levei para o Diário da Tarde, da
Empresa Archer Pinto. Lá fui recebido pelo jornalista Ulisses Paes de Azevedo,
um sujeito pai d'égua, que não me conhecia. No dia seguinte, ele publicou
"o fato digno de nota" sem mudar uma vírgula. Apenas omitiu meu nome,
dizendo que preservava o anonimato "para proteger o autor da sanha
ditatorial da diretora". Todo mundo achou que o autor havia sido o Lauro
Henrique Pinheiro, presidente do Gremio Estudantil Marciano Armond. Fiquei na
minha, não reivindiquei a autoria.
Mil gols
Depois disso, já residindo no Rio, cursei jornalismo na UFRJ. No segundo
ano, ainda estudante, fui contratado com salário inicial de repórter, pela
ASAPRESS, uma agência de notícias arrendada pela Conferencia Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB), o que me permitiu publicar matérias em jornais de
vários estados do nordeste e do sul, sempre movido à indignação. Algumas estão
na lista (www.taquiprati.com.br).
Depois vieram outros jornais no Rio de Janeiro, todos de oposição, onde
assinei também algumas matérias: O SOL, PODER JOVEM, O PAIZ (assim com
"z"), CORREIO DA MANHÃ e mais tarde fui correspondente em
Paris do Opinião e, já em Manaus, fundador e redator chefe do Porantim
- um jornal valente vinculado às lutas indígenas.
A maioria dos textos foram publicados mesmo em Manaus: na Crítica, onde
nasceu o Taquiprati, no Jornal do Norte, de propriedade do Paulo
Girardi, um jornal bonito e bem feito. Mas metade das crônicas foi publicada
aqui, neste Diário do Amazonas, que é uma espécie de segunda casa, onde
estou desde 2003 e onde sempre gozei de total liberdade para compartilhar com
os leitores a indignação.
Um texto jornalístico, como regra geral, não tem a qualidade de um texto
literário. Escrever para jornal é isso: um dia você é lido, no outro está
embrulhando peixe. De qualquer forma, se Pelé, com tanta notoriedade, dedicou
às criancinhas seu milésimo gol, por que um obscuro amazonense não pode dedicar
sua milésima crônica aos raros leitores que embrulham seu peixe com o
taquiprati? Afinal, quem lê, também lê porque a vida dói.
A teoria da recepção, surgida na Alemanha nos anos 1960, depois de
pesquisar como é que um texto, seja ele literário ou jornalístico, é recebido
por quem o lê, proclamou a soberania do leitor na recepção crítica de qualquer
obra. Dessa forma, rompe com aquela noção do texto como algo fixo, imutável,
engessado, unívoco, considerando a leitura como um processo de reconstrução do
texto por parte do leitor. Quem escreve, constrói significados; quem lê, também
constrói os seus. Neste caso, os mil textos apresentados no taquiprati
podem ser considerados mil meu com mil teu, leitor (a). Confere?
De qualquer forma, já não iremos muito longe, não porque a vida tenha
deixado de doer, mas porque chega uma hora em que o cansaço nos obriga a
pendurar as chuteiras. Nas palavras de Drummond, "cerradas as portas, a
luta prossegue nas ruas do sono".
*
Jornalista e historiador
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