domingo, 11 de novembro de 2012

Nazista em país tropical1

* Por José Paulo Lanyi

(O velho Klaus Baumer discursa em sua cadeira de rodas)

Terra Boa! (tosse) Hoje é um dia muito especial para todos nós. É o dia em que se comemora o aniversário da minha vó Frida. Foi ela que me apresentou as idéias que mudaram a minha vida e estão mudando a vida de toda a humanidade. Vó Frida faria hoje 122 anos. Nunca vou me esquecer daquela tarde chuvosa de Hamburgo.Comíamos acepipes do norte, ouvindo uma ópera magnífica do saudoso Wagner. Então, aconteceu algo muito especial. Deixei cair uma guloseima no chão. E sabem o que a minha vó Frida fez? (pequena pausa) Me fez lamber o chão para limpar a sujeira que o meu espírito desavisado havia produzido! Nesse momento, chorando muito, fiz o que minha vó mandou. Lambi sim, construtores, lambi sim.Porque desde cedo conheci o valor da obediência. Minha vó então me colocou no colo. Eu estava com a boca suja de doce e de cabelo do meu vô Franz. Vó Frida então me deu um tapa na cara. Ela me disse: “Você não devia ter vindo pro meu colo sem limpar a boca!”. Foi aí, construtores, que eu aprendi o sentido da disciplina! Mas meu aprendizado nesse dia não parou nisso. Vó Frida jogou-me no chão e chamou o vô Franz. Ela me alertou: “Preste atenção nisso, menino Klaus”. Pegou a mão do vô Franz e o arrastou numa bela dança comandada por Wagner. (emociona-se) Então ela parou e me deu o último e grande ensinamento, que hoje venho transmitir aos senhores: “Só os arianos sabem dançar assim!”. (chora e tosse) Construtores, meus construtores, sei que muitos dos senhores não têm avó, nem avô. Porque os senhores vivem numa outra época (inflamando-se) Os senhores é que ensinam os seus avós! (pausa. Procurando na platéia) Quem é José Bismarck?

(Um dos Jovens fica em pé e o saúda): Terra boa!

KLAUS BAUMER

Terra Boa!(pausa) Li no jornal outro dia que o senhor espancou o seu avô. Isso é verdade?

BISMARCK

Sim, meu senhor!

KLAUS BAUMER

Conte-nos a história.

BISMARCK

Senhor, a minha avó era alemã e foi dela que herdei meu belo nome e esses olhos claros. Mas o meu avô, senhor, o meu avô (hesitante)...era...era...(falando baixo) índio.

KLAUS BAUMER

O seu avô era o quê? (exaltado)

BISMARCK

e perdoe, senhor. Não tenho culpa disso e, como queria me redimir no nosso partido, decidi surrar o velho até a morte.

KLAUS BAUMER

Humm...bem que achei estranho, essa pele bronzeada... Nem estamos no verão...

HANS (levantando-se e apontando para Bismarck)

Ah! Um impuro! Um impuro!

(Jovens cercam Bismarck ameaçadores, mas são contidos pela palavra de Klaus)

KLAUS BAUMER

Ordem! Ordem! Disciplina! Terra boa!

JOVENS (sentando-se)

Terra Boa!

KLAUS BAUMER

Devemos limpar o chão sem deixar que nossa boca fique suja, construtores. Lembrem-se das lições de vó Frida.(para Bismarck) Levante-se, tropical! (Bismarck obedece-o) Pelos nossos registros, o senhor está aqui há 13 meses, 28 dias, 7 horas e (olhando no relógio de bolso), 12 minutos e 13 segundos. É tempo suficiente para conhecer o nosso regulamento.(Mostrando os papéis) No artigo terceiro da lei regulamentadora número 4, parágrafo quarto, inciso segundo, temos: (lendo o estatuto) “Não serão aceitos (com ênfase) jamais (!)... construtores cujos pais, avós e bisavós sejam: Judeus, negros, (nova ênfase) índios, homossexuais, asiáticos, pobres, comunistas, vegetarianos, nativos de florestas tropicais úmidas, portadores de doenças infecciosas, hispânicos, cidadãos que não gostam de batatas, astrólogos, eslavos, ecologistas, torcedores do Werner-Brehmen, árabes, pacifistas, indianos e toda aquela gente, defensores dos direitos humanos, sacerdotes egípcios, coveiros, cartomantes, jesuítas e por aí vai...É claro que isso reduz um pouco o nosso exército... Mas é preciso lembrar os ensinamentos de vó Frida: “Nunca venha para o meu colo sem tomar banho” E a sua pele encardida não nega (esmurrando a mesa): o senhor é um ilegítimo! Aqueles que desobedecem o regulamento devem ser punidos imediatamente! A sua punição (reflete com um sorriso e olha fixamente para Bismarck)...é a morte! (ostentando os papéis) Tá tudo aqui.(estala os dedos e do fundo saem dois negros). (para a platéia) Como os senhores sabem, não devemos sujar a boca.

(Negros levam Bismarck embora. Ele tenta reagir)

BISMARCK

Mas o Führer era moreno!

KLAUS BAUMER (esmurrando a mesa várias vezes)

Não era! Não era! Era louro! Era louro!

(Bismarck faz um gesto obsceno para Klaus enquanto é conduzido pelos negros. Saem)


1- Da peça “Klaus Baumer”, de José Paulo Lanyi e Sergio Carvalho Filho.


(*) José Paulo Lanyi é jornalista, escritor e dramaturgo, autor do romance "Calixto-Azar de Quem Votou em Mim", do romance cênico (gênero que criou) "Deus me Disse que não Existe", da peça "Quando Dorme o Vilarejo" (Prêmio Vladimir Herzog) e da coletânea “Teatro de José Paulo Lanyi e Outros Loucos” (no prelo), todos da editora O Artífice. Trabalha com o músico paulistano Flávio Villar Fernandes, com quem compôs a trilha “Invernada” e a sinfonia “Atlântica”.

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