As cidades atuais, notadamente as gigantescas, que denomino de megalopolis, perderam, e há muito, as características originais pensadas por seus primitivos criadores. Em muitos aspectos, constituem-se, até, em gigantescas armadilhas, que ampliam, entre outras coisas, as conseqüências de eventuais catástrofes naturais quando estas ocorrem. Quando (ou se) avisados com antecedência da iminência de algum cataclismo – como foi o caso recente do furacão “Sandy” que, felizmente, ao tocar o continente norte-americano amainou e se transformou em “super tempestade” – seus moradores ainda têm possibilidades de preservar o bem mais precioso que têm: a vida. Nem sempre, todavia, esse aviso prévio é viável ou até possível. E mesmo quando há esse tipo de chance, nem todos dão ouvidos às autoridades e morrem em decorrência do seu ceticismo quando não por estúpida teimosia.
As primeiras cidades surgiram, conforme alguns historiadores, há cerca de 9 mil anos e foram erguidas para proteger pessoas de saques de bandoleiros nômades, de tribos bárbaras que recorriam à força para garantir sustento e sobrevivência. Devem ter sido lugares agradáveis, em que todos se conheciam e em geral eram ligados por algum laço de parentesco, mesmo que remoto. Sua população era pequena – ínfima, se comparada à das megalopolis atuais – e havia verdadeiro espírito comunitário, genuíno e eficaz.
Hoje... Bem, na atualidade, as cidades não passam de enormes depósitos de pessoas, amontoadas umas sobre as outras em enormes caixotes de concreto, vidro e aço. Barulhentas, poluídas e agitadas, são o protótipo de como não se viver. Transformaram-se numa selva, posto que de cimento e asfalto, sem nem mesmo os atrativos desta (da natural), óbvio.
O fator segurança, que determinou sua própria concepção, hoje virtualmente inexiste. A solidariedade, que ligava os moradores das cidades antigas na defesa do patrimônio individual e coletivo, foi substituída pelo antagonismo, pela mórbida desconfiança, pela indiferença e pela ostensiva e feroz hostilidade. Não se trata mais de comunidade, pois pouquíssima coisa, quase nada, é atualmente comum. Tudo o que você precisa tem que ser pago e a peso de ouro. Nem sua casa lhe pertence, pois você tem que pagar, e para sempre, imposto para o município para tê-la no lugar em que ela está erguida (o tal do IPTU).
Os aglomerados urbanos transformaram-se em lugares perigosos e insalubres para se viver. E crescem, incham, expandem-se diariamente, concentrando cada vez mais pessoas infelizes, solitárias e amargas. Ou frustradas, neuróticas e desequilibradas.
Dois terços dos mais de 7 bilhões de habitantes do Planeta concentram-se, hoje em dia, em apenas uma centena de megalópolis, disformes torres de Babel dos tempos modernos que nem mesmo a confusão de línguas consegue dispersar. Ainda assim, seus habitantes não cogitam, sequer remotamente, em outro tipo de vida. No campo, por exemplo, onde não teriam a sensação claustrofóbica que as cidades causam. Sei que a maioria não concorda com minhas colocações e defende essa forma de vida como o suprassumo da modernidade e da civilização. Claro que não é. Mas... há gosto para tudo, não é fato?
Eça de Queiroz, em seu livro "A Cidade e as Serras", observou: "Na natureza nunca eu descobriria um contorno feio ou repetitivo! Nunca duas folhas de hera, que, na verdura ou recorte se assemelhassem! Na cidade pelo contrário, cada casa repete servilmente a outra casa, todas as faces reproduzem a mesma indiferença ou a mesma inquietação, as idéias têm todas o mesmo valor, o mesmo cunho, a mesma forma, como as libras; e até o que há de mais pessoal e íntimo, a ilusão, é em todos idêntica, e todos a respiram, e todos se perdem nela como no mesmo nevoeiro...A mesmice: eis o horror da cidade!" E olhem que na época em que Eça viveu, no século XIX, não havia uma única cidade com populações como as de hoje. O número de habitantes, por exemplo, de Londres, Paris, Nova York ou Xangai, chegava, exagerando na estimativa, aos seis milhões, e já era considerado um assombro. O que diria hoje o romancista português se vivesse numa Cidade do México, que caminha para os 23 milhões de habitantes? Ou em São Paulo, Tóquio ou Bombaim?
E refiro-me apenas aos relacionamentos interpessoais, sem me ater a inúmeras outras desvantagens, como a poluição atmosférica ou sonora, o problema do que fazer com as toneladas e toneladas de lixo acumuladas diariamente, ou a necessidade de prover de água e alimentos milhões de indivíduos etc.
Eça de Queiroz, no citado livro, identifica o que chama de "sulcos" como o maior dos inconvenientes das cidades. E explica: "É um perfume muito agudo e petulante que uma mulher larga ao passar, e se instala no olfato, e estraga para todo o dia o ar respirável. É um dito que se surpreende num grupo, que revela um mundo de velhacaria, ou de pedantismo, ou de estupidez, e que nos fica colado à alma, como um salpico, lembrando a imensidade da lama a atravessar. Ou então, meu filho, é uma figura intolerável pela pretensão, ou pelo mau gosto, ou pela impertinência, ou pela relice, ou pela dureza, é que não se pode sacudir mais a visão repulsiva...Um pavor estes sulcos".
É preciso uma nova confusão de línguas, como a registrada no relato bíblico, para que os construtores dessas babéis contemporâneas, dessas selvas de concreto e asfalto, cada vez mais loucas, violentas, enfumaçadas e barulhentas, se dispersem pelo mundo. Haverá, todavia, tempo para essa volta à natureza? O “homo urbanus” sobreviverá fora dessas “armadilhas”, no interior das quais nasceu, cresceu, sempre viveu e nunca cogitou de alternativas mais saudáveis e sábias? Ouso responder: não, não e não!
Boa leitura.
O Editor.
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Real e assustador.
ResponderExcluirDestaco: "A solidariedade [...] foi substituída pelo antagonismo, pela mórbida desconfiança, pela indiferença e pela ostensiva e feroz hostilidade". Sentimos a irritação e impaciência de todos, em cada frase. Mesmo sem precisão de defesa, as pessoas se agridem sistematicamente. Nos tornamos selvagens, mesmo que usar esse termo para nos desqualificar, signifique insultar os verdadeiros selvagens.