segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010




Quarta-feira de cinzas

* Por Aliene Coutinho

Sinto-me em uma quarta-feira de cinzas. É como se a grande festa que minha vida fora até aqui tivesse acabado. Estou sozinha num grande salão de baile. No chão, confetes e serpentinas, restos de comida, garrafas e copos vazios. No palco onde havia uma banda, instrumentos largados, desafinados por horas que tocaram a fio. O sol entra tímido através das cortinas entreabertas. Não sobrou quase nada inteiro. Restos. Pedaços. Sujeira. Não tenho forças sequer de erguer-me.

Arrasto-me até uma cadeira largada no canto e largo-me sobre ela. Estendida, sem sapatos, roupas amassadas e maquiagem borrada escorrendo pelo rosto. Respiro. Busco no ar mais que o ar. Quero um fôlego de vida. Rezo baixinho, com medo de acordar fantasmas, por um pouco de energia. Que seja elétron, próton... A carga mínima para que eu possa sair desse ostracismo. Ressabiada olho ao redor. Nada se move. Nem eu.

Imóvel. Prostrada. Ouso tapar os ouvidos para não escutar meus pensamentos. Eles fazem tanto barulho. São sons de vozes, choro, risos, música- marchinhas de carnavais, talvez- brindes, louça quebrando, crianças, vida. A cabeça gira. Sinto ânsia de vômito. Forço-me a ficar mais quieta ainda. Poderia até ficar sem respirar. Nada combina com nada. O sentimento é de pura ressaca física e moral.

A festa acabou há horas, dias, meses, anos. Fiquei fantasiada por pura teimosia. Insistência que me apeguei para sobreviver. Não percebi que os convidados foram embora, um a um, alguns à francesa, outros escandalosamente. Não percebi que a comida e a bebida acabaram. Há anos não sinto fome, nem sede. Não percebi que a música parou e as luzes apagaram. Aprendi com o tempo a ter visão e audição seletivas. Assim como se tornou seletiva a minha memória.

Nessa quarta-feira de cinzas tudo desabou. Acordei do meu porre, do torpor, das vertigens, das ilusões. Preciso levantar dessa cadeira, sair desse salão. Que fique sujo, escuro, sem vida. A festa acabou. Preciso aprender que nem todos os dias são de festa, e mesmo assim podem ser mais verdadeiros que um baile de carnaval.

* Jornalista e professora de Telejornalismo

4 comentários:

  1. Adorei o texto, Aliene! A vida pode ser semelhante ao carnaval: música, confete, serpentina em alguns momentos; ressaca, exaustão, ilusões em outros. Bacana é termos discernimeno para sairmos inteiros de cada fase que ela nos proporciona. Parabéns!

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  2. Muitos casamentos se acabam e o casal permanece junto por puro conformismo. É duro acordar desse marasmo, mas antes isso do que nunca. A lição final foi ainda mais convincente:" nem todos os dias são de festa, e mesmo assim podem ser mais verdadeiros que um baile de carnaval".
    Dessa tristeza toda eu conheço a dor de cor. E não é mole não.

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  3. Obrigada meninas! engraçado é deixar o texto nascer e depois perceber que ele revela mais do que queremos, ou fingimos não sentir.

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  4. Que bom que o carnaval dura só três dias, não é? E que chega um dia em que as tristezas, as decepções já não nos fazem mal. é hora de esquecer que houve "um carnaval" triste em nossas vidas, mas já não nos lembramos dele.É hora de recomeçar!

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