Juízes
sem teto: a mordomia vai acabar, seu Edgar?
* Por
José Ribamar Bessa Freire
Os
jornais noticiam que mais de 17 mil magistrados do Brasil recebem o
tal do auxílio-moradia de R$ 4.377, inclusive o juiz Sérgio Moro,
responsável pela Operação Lava-Jato em Curitiba, que goza da
mordomia desde outubro de 2014, mesmo sendo proprietário do
apartamento onde vive, talvez mais caro que um tríplex em Guarujá.
Ele alegou à Folha
de SP que
os magistrados – pobrezinhos – estão sem aumento há três anos.
No entanto, não informou quanto ganham. O salário corre em segredo
de justiça?
O
salário do desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, José
Antônio de Paula Santos Neto, segundo a mesma FSP (4/2/), é de R$
30.471,11 fora outros penduricalhos. Ele possui 60 imóveis
registrados em seu nome na base do IPTU, incluindo apartamentos em
bairros chiques da capital paulista, reside na capital, e mesmo assim
recebe o tal auxílio-moradia. Considera inadequado o pagamento, mas
recebe “porque todos os outros magistrados que têm imóvel próprio
também recebem”.
É
o caso de seu colega Luís Fernando Nardelli que tem 20 imóveis na
capital, um salário de R$ 28.947,55. A FSP apresenta uma lista. Com
esses salários, não há um só juiz que não seja proprietário de
imóveis. Mas de acordo com a ONG Contas Abertas, a estimativa de
gastos com auxílio-moradia no Judiciário e Ministério Público
soma R$ 5.000.000.000, 00 (cinco bilhões de reais). A Associação
Paulista
de Magistrados teve a cara de pau de defender a mordomia, em nota,
justificando que é “um direito previsto na legislação
brasileira”. Não informou quem faz as leis, em benefício de quem,
e quem são os executores.
-
“Eu não pensei em abrir mão porque isso é pago para todos. Se
você trabalha em uma empresa, e você recebe vale-refeição, às
vezes, sei lá, almoça em casa e não precisa” - declarou o
desembargador José Antônio. Eu juro que ele falou isso. Está lá
na FSP: a fala de um magistrado encarregado de defender a justiça,
que é realmente cega. Não está vendo o que acontece ao seu redor.
É como se eles não vivessem no Brasil.
Mordomias
amazônicas
Nas
redes sociais, as reações foram de indignação, humor e deboche.
“Não dê auxílio-moradia a um juiz. Ensine-o a pescar” –
berrava uma postagem, pedindo assinaturas para uma petição
destinada a acabar com essa indecência. Como alguém pretende fazer
justiça ancorado em tamanha injustiça?
Lembrei
de uma denúncia há mais de vinte anos no Amazonas e de uma peça de
Oduvaldo Vianna Filho, de 1962. É que justificativa similar usaram,
em 1996, alguns dos quase 200 funcionários públicos do Amazonas que
acumularam esses tipos de vantagens, ganhando muito mais do que o
próprio governador. Num país em que a maioria da população vive
em condições de pobreza e até de miséria, é um escândalo. Os
juízes deviam ter vergonhade
um privilégio condenável que é compartilhado por parlamentares,
promotores, ministros, conselheiros de Tribunais de Contas. Não tem
justificativa.
Quando
a denúncia pipocou nos jornais do Amazonas com os nomes dos marajás
que recebiam super-salários, minha mãe, que era viva, indignada, me
passou lá de Manaus a lista por telefone, sugerindo que escrevesse
sobre o assunto.
-
O pessoal tá
querendo que o Taquiprati dessa semana comente o listão dos marajás
– ela pressionou.
O pessoal é
uma categoria genérica, que tanto pode designar os vizinhos do Beco
da Bosta ou os parentes, amigos, aderentes e xerimbabos que
pressionam por tabela. Eu havia acabado de concluir a coluna semanalsobre
o racismo na PM no Amazonas, onde uma mulher negra era chamada
sistematicamente de “macaca” por um capitão. Mas a vontade
do pessoal é
uma ordem inapelável. Por isso, publiquei “Saiu o listão”
(25/03/1996), com a relação de alguns marajás, seus salários-base
e a remuneração líquida.
Ela
lia, eu anotava. Quando mencionou um dos nomes, interrompi a leitura:
-
Ôps! Pera lá, esse aí não. Esse aí eu conheço. É honesto.
Ela
me explicou, com as palavras de uma dona de casa, que a questão não
era essa. Que tinha gente honrada na lista e muito pilantra. Que não
se tratava de discutir pessoas, mas o fato de que não é justo que
professores, médicos e outros profissionais recebam salários de
fome, enquanto uma minoria fatura mais do que o próprio governador,
que já ganha uma indecência. É preciso pensar essa questão, fazer
um novo pacto, onde os recursos do Estado sejam distribuídos de
forma mais equitativa – ela disse com outra linguagem.
Gratificação
de risco
Pelos
nomes que então ouvi – especialmente os sobrenomes Braga e Lins –
conclui que algumas famílias haviam tomado de assalto o Estado,
privatizando-o. O aparelho de estado deixou de ser – se é que
algum dia foi – uma instituição pública, deixou de gerir a coisa
pública para atender os interesses particulares de famílias, em
detrimento da maioria da população.
Enquanto
em 1996 o salário mínimo era de R$ 112,00, havia espertalhões que
abocanhavam mensalmente 16.300 reais. Montou-se uma indústria de
gratificações e vantagens que foram sendo incorporadas
aos vencimentos. Tudo legal, nas leis feitas por eles para eles.
Tinha
uma tal de GAR – Gratificação de Atividades de Risco, similar ao
atual auxílio-moradia dos juízes e parlamentares. Na época,
perguntei: quem foi que disse que puxar saco é atividade de risco?
Que risco corre um procurador ou um conselheiro do Tribunal de
Contas?-
Foi o próprio Amazonino que mandou elaborar a lista e divulgá-la.
Ele declarou que a decisão do STF mandando pagar os marajás –
ainda que não tenha julgado o mérito da questão – prejudica o
Estado. Que ele vai acatar, mas que por causa disso vai faltar
recursos para a saúde e a educação – repetiu minha mãe lendo a
notícia do jornal.
-
O que é que o pessoal acha
disso? – indaguei.
-
O pessoal acha,
por incrível que pareça, que o Amazonino tem razão – ela
respondeu.
Parece
que não deu em nada, que não passou de um ato demagógico, porque
de lá pra cá a situação se agravou. Por isso, agora me veio à
lembrança de Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, que montou em 1962 a
peça de teatro “A mais-valia vai acabar, seu Edgar”, escrita em
versos rimados, que acabou dando origem ao Centro Popular de Cultura
(CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE).
Há
pouco mais de um mês, em dezembro de 2017, o ministro do STF Luiz
Fux bloqueou uma ação popular destinada a extinguir os pagamentos
de auxilio-moradia a essas castas privilegiadas. Retomando Vianinha,
cabe perguntar: Será que a mordomia vai mesmo acabar, seu Edgar? Ou
os juízes vão continuar nadando em ouro, seu Moro?
P.S.
- A coluna agradece as charge, as pirateadas na internet. Tudo pela
causa.
*
Jornalista
e historiador.
Nenhum comentário:
Postar um comentário