A ciência e a língua portuguesa
* Por
Miguel Osório de Almeida
A necessidade de
conhecer muitas línguas é um dos grandes obstáculos encontrados pelos jovens
inteligentes ao se dedicarem ao estudo das ciências. Ela se torna iniludível
quando o fim tido em vista é a pesquisa de novas verdades e não somente formar
uma cultura científica geral, destinada às aplicações. Neste caso ninguém pode
dispensar a leitura de trabalhos originais publicados em livros ou revistas
muito especializados. Como essas publicações são feitas em diferentes países,
não é possível evitar a multiplicidade das línguas.
Antes da Grande
Guerra, já se sentia bem a importância do problema das línguas para os cultores
da ciência. Mas, nessa época, a questão não se apresentava com o aspecto
observado no momento atual, nem tinha a gravidade de que hoje ela se reveste. A
cultura científica se achava sob a direção imediata de alguns grandes centros
situados em um pequeno grupo de países europeus. As línguas desses países
impunham-se com absoluta preponderância. Assim, colocaram-se à frente, em um
primeiro plano, conquanto de importância relativa, variável, o alemão, o
inglês, o francês e o italiano. Não me consta ter havido algum dia uma
convenção expressa estabelecendo essas quatro línguas como as línguas, por
assim dizer, oficiais da ciência. Mas o uso, a tradição, o passado de cultura e
o presente de atividade dos países onde são faladas deram-lhe uma posição
privilegiada. As revistas científicas internacionais publicavam os seus
trabalhos indiferentemente em qualquer delas. Um trabalho só era realmente
lançado no mundo científico quando em uma delas redigido. Em rigor, ninguém era
obrigado a conhecer os trabalhos escritos em outras línguas.
Sem dúvida, quando à
importância real, como instrumento de cultura, existiam diferenças entre essas
quatro línguas principais. Pelo valor e número dos trabalhos publicados, e pela
admirável organização dada à documentação bibliográfica na Alemanha, havia uma
tendência franca para canalizar para as revistas alemãs os trabalhos de muitos
outros países. Acrescentando a isso a capacidade e o esforço dos alemães em
todos os domínios da ciência, pode-se compreender a real supremacia que a
língua alemã tinha tomado.
A um homem de ciência,
com a obrigação de estar ao par do movimento científico contemporâneo,
impunha-se, portanto, como tarefa preparatória, o estudo dessas quatro línguas,
de modo a ser capaz, senão de escrever, ao menos de ler e interpretar
corretamente os trabalhos nelas escritos. Compreende-se facilmente quão
dispendioso é esse esforço, tanto mais quanto nem sempe as disposições de
espírito e as formas de inteligência adequadas à cultura de certas ciências são
as mais favoráveis ao estudo das línguas. Apesar de todo o interesse do estudo
das línguas, em suas origens, em sua classificação, em suas transformações
progressivas, em suas influências recíprocas, para o homem de ciência, elas são
apenas um meio de expressão, um aparelho de comunicação de idéias. Para ele há
todas as vantagens em tornar a estrutura e o manejo desse aparelho cada vez
mais simples.
[...]
O ideal de formar uma
literatura científica nacional, escrita em português, sempre existiu,
consciente ou inconscientemente no Brasil. Em épocas diferentes, claramente
expresso em artigos de jornais ou revistas, ou oculto mas presidindo à
orientação dos espíritos, ele pode ser encontrado como um dos pensamentos
constantes de nossos homens de ciência da segunda metade do século passado, mesmo
neste princípio do século passado, e mesmo neste princípio de século. Como
acontece muitas vezes com as aspirações nascidas de sentimentos profundos, mas
não suficientemente analisados, a vontade de erigir o português em uma língua
científica sofreu durante um certo período, em parte prolongado até hoje, uma
aberração decorrente de seu exagero. A preocupação da língua tomou a dianteira
a todas as outras. Aos poucos, a própria matéria científica já se tornava
secundária. A pureza de linguagem era tudo. Como esse purismo não se encontrava
nos escritores contemporâneos, tornava-se preciso procurar os modelos entre os
escritores antigos, isto é, entre os clássicos portugueses. O esforço para
adaptar às necessidades da ciência moderna as formas antiquadas da língua, só
podia dar em resultado, como deu, uma literatura científica estéril, e
destinada a uma vida precária e efêmera.
A análise desse
curioso movimento, cuja intensidade atingiu ao máximo entre os cultores das
ciências médicas, já foi por mim esboçada em outro estudo. (V. "A
mentalidade científica no Brasil", em Homens e coisas de ciência.) Por
mais estranho que fosse, ele teve suas causas psicológicas, complexas, mas
assim mesmo susceptíveis de serem desmembradas e postas em evidência. O conhecimento
dessas causas inspira uma certa benevolência na maneira de julgá-lo, e dá uma
orientação mais segura para combatê-lo em suas últimas manifestações.
Evidentemente o combate deve ser dirigido contra o preciosismo literário,
traduzido pelo emprego constante de arcaísmos e de formas caídas em desuso, o
que torna a leitura de muitos escritos brasileiros em extremo difícil, mesmo
para nós brasileiros. O trabalho para chegar a escrever em tal estilo é tão
absorvente que, sem nenhum exagero, posso dizer, existirem ainda belas
inteligências de todo perdidas e desviadas para esse gênero de atividade. Mas o
ideal de formar uma literatura científica brasileira, escrita em português,
purificado dessas deformações que denotam a incerteza dos primeiros passos,
deve também ser combatido ou merece apoio? Não seria possível responder a essa
questão de um modo uniforme; alguns casos devem ser isoladamente considerados.
Uma das primeiras
necessidades da literatura científica é o ensino. No Brasil, não existe ainda
literatura organizada nesse sentido. Há alguns raros tratados de uma ou outra
ciência. Muitas matérias ou mesmo a maioria delas, ainda não possuem o seu
representante brasileiro. Até aqui os estudos de ciência têm sido feitos com o
auxílio de livros estrangeiros. Entre estes, têm ocupado o primeiro lugar os
livros franceses. A criação de uma literatura brasileira destinada ao uso de
nossos estabelecimentos de ensino só teria vantagens. Em primeiro lugar, há a
tomar em consideração as tendências de espírito que são peculiares a cada povo.
Muitas dificuldades que são encontradas pelo estudante brasileiro na leitura
dos livros europeus, provém dos hábitos próprios de raciocínio, das
características de mentalidade que são diferentes, e mesmo da própria
organização dos estudos, que é diversa.
O ideal do ensino,
impossível de atingir por enquanto na vida prática, seria o ensino individual.
Dada essa impossibilidade, seria muito desejável que cada professor tivesse o
seu livro. Não podendo ainda chegar até aí, ao menos deve-se aconselhar que
cada país tenha os seus livros de ciência.
Ao lado dessas razões,
puramente pedagógicas, há ainda outras. Pela constituição do meio, pelas
condições particulares de vida, os estudos de algumas ciências devem se
transformar, segundo os países. Em alguns há necessidade de desenvolver certos
pontos que podem ser passados por alto em outros. Isso não se dá exclusivamente
com certas ciências que assumem uma importância toda local. Em estudos de
Mineralogia ou de Geologia, é evidente que a Mineralogia e a Geologia do
Brasil, pela sua importância para nós, adquirem uma posição de relevo. O mesmo
se poderá dizer da Patologia tropical, mais particularmente da Patologia
brasileira. Mas, fora dessas ciências, para o estudo das quais entre nós os
livros europeus evidentemente não satisfazem, há outras em que o mesmo se
passa, conquanto de modo menos claro. A Fisiologia é um exemplo disso. As
condições de temperatura diferente, as espécies animais, às vezes diversas
entre nós (a nossa rã e as rãs européias não são do mesmo gênero), a facilidade
com que se obtêm certos elementos difíceis de conseguir na Europa, tudo dá ao
estudo dessa ciência no Brasil um aspecto novo. O ensino, e com ele a
literatura, forçosamente sofrem a influência dessas condições. Um livro que
ainda não existe, escrito no Brasil sobre essa ciência, terá que tomá-las em
consideração.
A literatura didática
deve, pois, ser criada e desenvolvida no Brasil. Bem orientada, sem os erros
que a desvirtuaram a princípio, ela constitui uma tarefa a ser tomada pela
atual geração de professores.
Ao lado da literatura
didática, poderia ser colocada a literatura de vulgarização, também
praticamente não existente entre nós. As vantagens de compor uma série de
livros que despertem o interesse geral para as coisas científicas são
evidentes. Esse gênero de literatura destina-se a uma certa ordem de leitores.
Ele tem sempre um interesse local.
As aplicações
científicas a problemas brasileiros formam um terceiro caso em que se aconselha
o emprego da língua portuguesa, conquanto em um grau menor que nos dois
primeiros casos. Os nossos problemas industriais, as nossas questões agrícolas
têm, por vezes, um interesse que parece limitado a nós. É preciso, entretanto,
não esquecer a existência de outros países que, em determinados casos,
apresentam condições semelhantes às nossas. Os resultados por nós obtidos são
susceptíveis de serem aplicados a esses países. Além disso, o Brasil tem
procurado sempre atrair os capitais estrangeiros. É indispensável assim que os
países mais diretamente interessados em nosso desenvolvimento possam conhecer
as soluções dadas às nossas dificuldades ou pelo menos a maneira por que as
encaramos. Essas questões, que nos interessam em primeiro lugar, e precisam ser
largamente divulgadas entre nós, o que exige o emprego de nossa própria língua,
merecem, entretanto, uma publicação ao menos resumida, em outras línguas mais
conhecidas.
O último ponto a
estudar é o da publicação dos trabalhos de ciência pura. Se os nossos estudos
são bem feitos, devem sem publicados de modo a se tornarem conhecidos de todos
aqueles que direta ou indiretamente são interessados em questões idênticas. Não
se obterá tal resultado mantendo as publicações exclusivamente em português.
Tão cedo não se poderia esperar dos pesquisadores estrangeiros o conhecimento
de nossa língua. Os trabalhos escritos em português têm até hoje tido o destino
de ser conservarem quase totalmente ignorados. Disso amargamente se queixam os
homens de estudo, que confirmam a idéia desanimadora de ser a língua portuguesa
o túmulo do pensamento. Isso se dá, porém, porque nós, os brasileiros e os
portugueses, não temos um passado de cultura científica que pese, dando relevo
à nossa língua. As nossas condições históricas não permitiram ou não
facilitaram o desenvolvimento de nossa cultura. Em rigor, poder-se-ia dizer,
pois, ter sido o pensamento português e brasileiro o túmulo da língua portuguesa...
Para erguer esta, é preciso primeiro criar, ou se quisermos ser menos
rigorosos, fazer renascer aquele.
É provavelmente a esse
renascimento que assistimos agora. Para ser conhecido e poder produzir os seus
frutos, trazendo para o progresso geral a sua contribuição, é indispensável
esquecer todo e qualquer ponto de vista estreito, encarar de frente a questão e
tomar o melhor caminho.
Até agora muitas
publicações científicas brasileira têm procurado resolver essas dificuldades,
dando, ao lado do texto português, uma tradução francesa, inglesa ou alemã, dos
trabalhos nelas insertos, ou, em certos casos, publicando nessas línguas um
pequeno resumo das suas principais conclusões. A melhor solução para o caso,
porém, não se nos afigura ser essa. Seria antes preferível criar um órgão
único, que reunisse os principais trabalhos escritos em português e esparsos
por várias revistas, publicando-os exclusivamente em uma das línguas mais
difundidas. Publicações desse gênero já existem para exemplo, prestando os
melhores serviços. Há muitos anos são conhecidos dos biologistas os Archives
italiennes de Biologie. Os holandeses criaram recentemente os Archives
néerlandaises de Physiologie. Alguns outros países escolheram o alemão para
casos idênticos. O Brasil, só ou associado a outras nações da América latina,
poderia promover uma publicação assim orientada, estendendo-se a todas as
ciências. Esses arquivos brasileiros ou sul-americanos de ciências seriam
escritos em francês, e dariam a conhecer os principais trabalhos científicos
feitos no Brasil ou na América Latina. Além de todas as outras vantagens, um
órgão desses teria a de facilitar extremamente as pesquisas bibliográficas. Ele
seria um meio de coordenação de publicações esparsas.
Seria de desejar que
as questões agitadas neste ensaio, provocassem a manifestação de outras
opiniões. A solução dos problemas dessa natureza se tornará tanto mais difícil
quanto mais retardada.
(Homens e coisas de
ciência, 1925)
* Médico fisiologista, cientista, professor, autor de obra especializada
e ensaísta, membro da Academia Brasileira de Letras.
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