sexta-feira, 13 de junho de 2014

Vida e morte de Gabriel García Márquez

* Por Urariano Mota

Da morte da García Márquez no último 17 de abril, prefiro falar da sua vida. Digo melhor, penso: prefiro falar das lições de Gabriel García Márquez.

Primeiro, a partir dos livros de ficção que ele escreveu, recebemos esta luz:

As palavras, a frase, a narração, o modo de contar dele nos ensinaram a ler, escrever e contar o mundo. Isso, é claro,  já havíamos visto, de modo fundamental, em Cervantes, no Padre Vieira, em Machado de Assis. “Isso” quer dizer, amigos: narrar, contar uma história, não é dizer, não é o mesmo que falar. Narrar é retirar da realidade mesma, da própria realidade a frase que encarna, que concretiza, que torna imorredoura a sombra, que antes era vaga ou apenas entrevista. Narrar é dar a forma ao que antes não tinha forma, que somente mostrava pistas ou traços na intuição. Dos livros de ficção, ele nos deu a seguinte certeza:  Gabriel García Márquez é o  Cervantes do século XX. Um criador absoluto. O cara que devolveu a autoestima dos latino-americanos. Mas como? Macondo. Macondo foi quem realizou a façanha.

“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo.”

Em segundo lugar, com Gabriel García Márquez também aprendemos nos livros de entrevistas, como no magnífico Cheiro de Goiaba, que recomendo. "Cheiro de Goiaba" é o livro em que conversa com um amigo de juventude, Plinio Apuleyo Mendoza.  E mais: com García Márquez aprendemos vida e literatura nos livros de autobiografia e na sua extraordinária biografia,  “Gabriel García Márquez – Uma vida”, de Gerald Martin, que tenho comigo todo anotado, lido e relido.

Nesses livros de entrevista, autobiográficos ou biografia lemos e aprendemos a trajetória da sua vida, e vemos e notamos e aprendemos e apreendemos o escritor antes do sucesso absoluto em todos os continentes, antes de ser o Maestro, o mestre Gabo. Gabriel García Márquez, antes de ser escritor, enfim, era uma alma errante, uma alma perdida a vagar, sem rumo definido. Mas com uma vontade louca de entender o mundo, com uma fome voraz de alimentos de toda sorte, principalmente de literatura.

É exemplar, modelar, a forma com que ele faz tributo e rende homenagens aos grandes que o precederam, inclusive aos grandes que só ele conheceu, porque não ganharam fama. E de tal modo ele lhes reconhece excelência, que parece nos dizer: “olhem, este sim era maior”. E também dos grandes que alcançaram o status de criador. É assim que ele nos fala de Juan Rulfo, por exemplo, o fecundo romancista que o influenciou e não conheceu o boom literário como ele, García Márquez.         

Nos últimos dias, na imprensa ,o geral dos obituários e"críticos literários" (onde cairiam melhor as aspas? em críticos ou em literários?) foi reduzir o valor imenso, diria até, quase insuperável de Gabriel García Márquez. A bola já foi lançada, o sino já tocou, as trombetas já soaram: García Márquez era "esquerdista", ou "amigo do ditador Fidel Castro".  A necessária autonomia da arte, tão proclamada quando falam de Borges, de Ezra Pound, ou do "liberal" Mario Vargas Llosa, no caso de Gabo é esquecida. Olvidada.

Na verdade, nem mesmo autonomia era preciso chamar. Bastaria uma sensibilidade, um conhecimento maduro da literatura, para notarem que faleceu um dos maiores escritores do século XX, um dos maiores da história da literatura. Mais: que na sua adesão ao socialismo estava um humanismo luminoso, aquele que o fez amar as pessoas do povo, o seu lugar, a sua terra, o seu barro fundador.

Com a sua morte, o consolo que temos é saber que os seus livros venderam bem mais, nestes dias muito mais  depois do seu falecimento. Os seus livros, que andavam meio parados,  se esgotam. Isso, é claro, depois daquela explosão de estrelas no espaço do universo,  daquele big bang chamado  “Cem anos de solidão”. Isto nos consola e nos conforta: a  sua morte faz nascer, renascer pessoas para o gozo da literatura. Essa é a glória que ele não quis. Mas as circunstâncias do mercado lhe dão, talvez sem saberem que a literatura é um protesto, revolta e grito contra o mercado.

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife” e “Dicionário amoroso de Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.


  

Um comentário:

  1. Maravilha de homenagem. Ensina-nos muitas coisas, seu relato e Gabriel Garcia Marques.

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