De volta ao primeiro beijo
* Por
Moacyr Scliar
TINHA ACABADO de ler a
matéria sobre o primeiro beijo, no pequeno apartamento em que morava desde que
ficara viúvo, anos antes, quando (coincidência impressionante, concluiria
depois) o telefone tocou. Era uma mulher, de voz fraca e rouca, que ele de início
não identificou: - Aqui fala a Marília -disse a voz. Deus, a Marília! A sua
primeira namorada, a garota que ele beijara (o primeiro beijo de sua vida)
décadas antes! De imediato recordou a garota simpática, sorridente, com quem
passeava de mãos dadas. Nunca mais a vira, ainda que freqüentemente a
recordasse -e agora, ela lhe ligava. Como que adivinhando o pensamento dele,
ela explicou: - Estou no hospital, Sérgio. Com uma doença grave... E queria ver
você. Pode ser? - Claro -apressou-se ele a dizer- eu vou aí agora mesmo. Anotou
rapidamente o endereço, vestiu o casaco, saiu, tomou um táxi. No caminho foi
evocando aquele namoro, que infelizmente não durara muito tempo - o pai dela,
militar, havia sido transferido para o Norte, com o que perdido o contato - mas
que o marcara profundamente. Nunca a esquecera, ainda que depois tivesse
beijado várias outras moças, uma das quais se tornara a sua companheira de toda
a vida, mãe de seus três filhos, avó de seus cinco netos. E não a esquecera por
causa daquele primeiro beijo, tão desajeitado quanto ardente.
Chegando ao hospital
foi direto ao quarto. Bateu; uma moça abriu-lhe a porta, e era igual à Marília:
sua filha. Ele entrou e ali estava ela, sua primeira namorada. Quase não a
reconheceu. Envelhecida, devastada pela doença, ela mal lembrava a garota
sorridente que ele conhecera. Consternado, aproximou-se, sentou-se junto ao
leito. A filha disse que os deixaria a sós: precisava falar com o médico.
Olharam-se, Sérgio e
Marília, ele com lágrimas correndo pelo rosto. - Você sabe por que chamei você
aqui? - perguntou ela, com esforço. - Porque nunca esqueci você, Sérgio. E
nunca esqueci o nosso primeiro beijo, lembra? Na porta da minha casa, depois do
cinema... - Claro que lembro, Marília. Eu também nunca esqueci você... - Pois
eu queria, Sérgio... Eu queria muito... Que você me beijasse de novo. Você
sabe, os médicos não me deram muito tempo... E eu queria levar comigo esta
recordação...
Ele levantou-se,
aproximou-se dela, beijou os lábios fanados. E aí, como por milagre, o tempo
voltou atrás e de repente eles eram os jovenzinhos de décadas antes,
beijando-se à porta da casa dela. Mas a emoção era demais para ele: pediu
desculpas, tinha de ir. A filha, parada à porta do quarto, agradeceu-lhe: você
fez um grande bem à minha mãe. E acrescentou, esperançosa: - Acho que ela agora
vai melhorar. Não melhorou. Na semana seguinte, Sérgio viu no jornal o convite
para o enterro. Mas, ao contrário do que poderia esperar, apenas sorriu. Tinha
descoberto que o primeiro beijo dura para sempre. Ou pelo menos assim queria
acreditar.
* Médico
e escritor gaúcho
Essas lembranças quando reeditadas são um perigo. Revi dois namoradinhos de adolescência, um, depois de 34 anos e o outro, depois de 38 anos. Foram quatro sustos, os meus e os deles.
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