Vida e morte de Gabriel García Márquez
* Por
Urariano Mota
Da morte da García
Márquez no último 17 de abril, prefiro falar da sua vida. Digo melhor, penso:
prefiro falar das lições de Gabriel García Márquez.
Primeiro, a partir dos
livros de ficção que ele escreveu, recebemos esta luz:
As palavras, a frase, a
narração, o modo de contar dele nos ensinaram a ler, escrever e contar o mundo.
Isso, é claro, já havíamos visto, de
modo fundamental, em Cervantes, no Padre Vieira, em Machado de Assis. “Isso”
quer dizer, amigos: narrar, contar uma história, não é dizer, não é o mesmo que
falar. Narrar é retirar da realidade mesma, da própria realidade a frase que
encarna, que concretiza, que torna imorredoura a sombra, que antes era vaga ou
apenas entrevista. Narrar é dar a forma ao que antes não tinha forma, que
somente mostrava pistas ou traços na intuição. Dos livros de ficção, ele nos
deu a seguinte certeza: Gabriel García
Márquez é o Cervantes do século XX. Um
criador absoluto. O cara que devolveu a autoestima dos latino-americanos. Mas
como? Macondo. Macondo foi quem realizou a façanha.
“Muitos anos depois,
diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar
aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era
então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um
rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas,
brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas
coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo.”
Em segundo lugar, com
Gabriel García Márquez também aprendemos nos livros de entrevistas, como no
magnífico Cheiro de Goiaba, que recomendo. "Cheiro de Goiaba" é o
livro em que conversa com um amigo de juventude, Plinio Apuleyo Mendoza. E mais: com García Márquez aprendemos vida e
literatura nos livros de autobiografia e na sua extraordinária biografia, “Gabriel García Márquez – Uma vida”, de
Gerald Martin, que tenho comigo todo anotado, lido e relido.
Nesses livros de
entrevista, autobiográficos ou biografia lemos e aprendemos a trajetória da sua
vida, e vemos e notamos e aprendemos e apreendemos o escritor antes do sucesso
absoluto em todos os continentes, antes de ser o Maestro, o mestre Gabo. Gabriel
García Márquez, antes de ser escritor, enfim, era uma alma errante, uma alma
perdida a vagar, sem rumo definido. Mas com uma vontade louca de entender o
mundo, com uma fome voraz de alimentos de toda sorte, principalmente de
literatura.
É exemplar, modelar, a
forma com que ele faz tributo e rende homenagens aos grandes que o precederam,
inclusive aos grandes que só ele conheceu, porque não ganharam fama. E de tal
modo ele lhes reconhece excelência, que parece nos dizer: “olhem, este sim era
maior”. E também dos grandes que alcançaram o status de criador. É assim que
ele nos fala de Juan Rulfo, por exemplo, o fecundo romancista que o influenciou
e não conheceu o boom literário como ele, García Márquez.
Nos últimos dias, na
imprensa ,o geral dos obituários e"críticos literários" (onde cairiam
melhor as aspas? em críticos ou em literários?) foi reduzir o valor imenso,
diria até, quase insuperável de Gabriel García Márquez. A bola já foi lançada,
o sino já tocou, as trombetas já soaram: García Márquez era
"esquerdista", ou "amigo do ditador Fidel Castro". A necessária autonomia da arte, tão
proclamada quando falam de Borges, de Ezra Pound, ou do "liberal"
Mario Vargas Llosa, no caso de Gabo é esquecida. Olvidada.
Na verdade, nem mesmo
autonomia era preciso chamar. Bastaria uma sensibilidade, um conhecimento
maduro da literatura, para notarem que faleceu um dos maiores escritores do
século XX, um dos maiores da história da literatura. Mais: que na sua adesão ao
socialismo estava um humanismo luminoso, aquele que o fez amar as pessoas do
povo, o seu lugar, a sua terra, o seu barro fundador.
Com a sua morte, o
consolo que temos é saber que os seus livros venderam bem mais, nestes dias
muito mais depois do seu falecimento. Os
seus livros, que andavam meio parados,
se esgotam. Isso, é claro, depois daquela explosão de estrelas no espaço
do universo, daquele big bang
chamado “Cem anos de solidão”. Isto nos
consola e nos conforta: a sua morte faz
nascer, renascer pessoas para o gozo da literatura. Essa é a glória que ele não
quis. Mas as circunstâncias do mercado lhe dão, talvez sem saberem que a
literatura é um protesto, revolta e grito contra o mercado.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife” e
“Dicionário amoroso de Recife”. Tem
inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
Maravilha de homenagem. Ensina-nos muitas coisas, seu relato e Gabriel Garcia Marques.
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