* Por Marco Albertim
O fim de tarde pouco difere da Praça do Sebo. A hora é outonal feito um ocaso, tão cinzenta quanto as paredes das lojas. Umas lojas, mais que isso, desistiram de se promiscuir com a decadência da praça; por certo para não mostrar a dor da humilhação. Cinco das dezoito erguidas há uma vintena de anos, fecharam as portas. A estátua de Mauro Mota sentado à frente de um jardim, resiste; tem o brilho de cera sob os óculos de aro grosso. Ele próprio, sem se dar conta de quando poeta ou jornalista, é agora uma elegia; uma elegia robusta sob a forma do cimento cozido no forno. Mauro Mota, o poeta de elegias, funde-se à elegia da Praça do Sebo. Em sua frente há um livro do mesmo cimento corpóreo, grosso feito um missal do Santo Ofício. Ler é tão solene quanto purgativo, di z o franzido de sua testa. Mas puseram outro livro, menor, com a brochura aberta, sobre o maior; as páginas têm a cor de uma escritura grilada num cartóriode maus ofícios. É um best-seller chinfrim, tirado da prateleira para não decompor o mofo prazeroso de clássicos fora de catálogos.
Chove; os fios d’água, finos, deixam-se filtrar entre folhas e galhos do flamboiã no jardim suspenso. Inda que fizesse sol, nenhum sebista trocaria o best-seller pelo Boletim sentimental da guerra do Recife. Um estalo mudo seria espreitado na estátua do poeta. Tudo ali, no entanto, é elegíaco: mendigos recendendo a álcool, deitados nos bancos à sombra de um oitizeiro; tufos de musgos, tão crescidos que já não se vê o beiral da comprida marquise no prédio em frente; ao fundo das lojas, o musgo não esconde a cor desbotada dos edifícios, o reboco caído, igual a perebas num corpo insano. Os pombos, sem culpa, acumpliciam-se com a trilha sonora rufante, telúrica.
Um poste de ferro dá apoio a um globo de luz elétrica; a luz se acende mortiça, posto que também se rendeu ao tempo outonal; não quer deixar dúvida, e mostra as estrias escuras do cisco soprado pelo vento; nos quatro cantos do globo, de cima a baixo; para enganar, são simétricas.
O anúncio de venda, numa das lojas, é visto sob a extremidade da marquise. A Praça do Sebo é um nicho esquecido. A loja à venda é um armário de parede em desuso, com o bodum do mofo real. O anúncio em letras pretas, impressas, tem abaixo o número do celular; aqui os traços são como a piçarra que se espalha conforme a erosão que a molda. O dono, parece, não quer se expor à zombaria advinda da cotação que tem no juízo. Os livros, os da vitrine, balançam com o vento na chuva; não se molham, estão protegidos, pendurados num lençol plástico, transparente, dividido em compartimentos que deixam cada brochura deitada para um lado ou para o outro, feito uma boca com dentes desencontrados.
A calçada é estreita; ora... Para que uma calçada larga se a praça está vazia? O metro que a separa do largo é bastante para acomodar o assento do proprietário, ajuizar-se conhecedor dos livros de Sílvio Romero. Ou para dar conta da informação prenha de vaidade, como Melquisedeque, o sebista findo; ele segurou a farta lombada do livro de Josef Stalin sobre as nacionalidades e disse – “Quer dizer marechal de aço, o seu nome...”
Andar pela calçada é bom para sentir o cheiro do sebo e distinguir o espectro de Melquisedeque. No extremo oposto da loja à venda está a administração que também sumiu, pouco se dando com o cheiro de mofo. Nos fundos, esqueceu-se de pôr creolina para evitar o fartum das sentinas.
A praça é cercada por grades de ferro. Do lado de fora há centenas de cadeiras de uma dezena de bares; cachaça e cerveja disputam o gosto de homens e mulheres indiferentes a brochuras raras. No meio, no largo acesso à praça, as mesas esbarram o caminho. Dali, veem-se as janelas dos fundos do Edifício Continental, outrora reduto de alfaiates em dia com a moda. A memória choca-se com roupas penduradas do lado de fora; se não chove, a água que escorre dos panos dá seiva ao musgo seco.
Do outro lado da Avenida Dantas Barreto, há outro sebo. Trinta e oito barracas cobertas, espremidas, sob uma resistente poça de lama na esquina do prédio ao lado, onde fora o INSS.
Cida Pedrosa é poetisa, também quer recitar no microfone da Câmara Municipal, como vereadora. Ali, no sebo, lançou seu primeiro livro. Sebistas encontram-na no dia cinco próximo, na praça. Antes que assinem o atestado de óbito da Praça do Sebo.
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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