quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Ele fala em prosa poética

* Por Mara Narciso

Conheço pouco e o pouco que sei me desperta, se não em nível de devoção, ao menos no de admiração. É pessoa do sexo masculino, estatura média, cabelos grisalhos, pele branca, olhos claros e rosto redondo. Está acima do peso, e fala disso com graça. Costuma ostentar bom-humor, mostrando-se afável e alegre, sorrindo com facilidade. Em tudo somos políticos, mas ele foi de fato e de direito, e assim deve ter uma montanha de inimigos. Soube que foi ameaçado por adversários. Não titubeia e faz a denúncia com coragem. Espero que não o acertem.

Em tempos remotos, os moradores de rua ou mendigos eram chamados de doidos, de forma genérica. Havia então um pobre coitado, portador de grave deficiência mental, que nem falava. Era miúdo, de pele parda, com idade indefinida, o que pouco importava para si e para os outros. Era torto, alquebrado pelo peso do sofrimento e da loucura do seu colecionismo, pois arrastava cidade afora, com boa dose de barulho, tudo o que possuía. Os trastes que levava em dezenas de quilos eram panelas, tampas, latas, ferros e toda sorte de bugigangas deixadas em via pública, que ia juntando aos seus tesouros. Quando queriam provocá-lo, bastava berrar a alcunha que detestava: “Galinheiro”. Enfurecido, arrancava pedras de onde as tivesse e as atirava, algumas vezes com boa pontaria. Crianças e adultos riam da sua maluquice. Hoje é normal pessoa incapaz receber aposentadoria, haver assistente social, locais de recolhimento e acolhimento, mas naquele tempo, alguém desse tipo passava a vida assim, vivendo num cantinho, comendo o que lhe davam. Este morava ao relento, perto do Corpo de Bombeiros.

Anos atrás li num jornal da cidade que assassinos haviam triturado a cabeça de Galinheiro com uma pedra, enquanto ele dormia. A foto no meio do papel, com a poça de sangue no local sobre a calçada onde seu corpo fora encontrado, estava lá. Era uma crônica pungente, que fazia o paralelo entre a inocência de um desvalido deficiente mental, e a crueldade humana, de tal forma que eu não me contive e chorei alto. E ainda agora me emociono ao lembrar as palavras arrancadas da emoção do jornalista, intelectual e professor Benedito Said, motivo dessas linhas. Também radialista, ex-vereador, ex-presidente da Câmara Municipal de Montes Claros, foi tão contundente em sua escrita, que se fez inesquecível.

Sempre que o ouço no rádio, volta-me a memória do quanto fui tocada pela sua revolta e reflexões. Sei que é diretor da Rádio Unimontes e tem a dura missão de entrevistar os reitores de vez e quando. Com toda a seriedade que a função exige, acredita que o “Conversando com o Reitor” consegue ficar palatável pela iluminação saborosa de Said?

O programa “Comando das Sete”, este na Rádio Educadora, o qual já visitei duas vezes, tem a participação dos ouvintes que telefonam e fazem perguntas respondidas na hora, numa curiosa interação. O que me diverte mais é o programa “Nossa Arte Nossa Gente” da Rádio Unimontes, com o quadro “Paisagem na Janela”, que é uma viagem feita na modalidade falada por Benedito Said, seguido por Alex Tuta e Lúcio Higino no “Vamos Viajar”. Contando as dificuldades do caminho, o trio vai rindo das nossas mazelas de região carente e gente incansável, pois, leitor das altas literaturas, contraditoriamente, Said conhece cada buraco desse chão seco e pobre do norte de Minas, cada vereda, cada mato, cada comida, e também o dialeto dos inóspitos rincões. Numa fictícia Rural azul, velha e que se quebra a cada curva, embrenham-se no mato, mostrando as paisagens, gentes, costumes, e casos desse povo nosso. Vou junto com muito gosto, pois é como assistir a um vídeo, num show de descrição e conhecimento, com a vantagem de que a fala natural do professor Said é uma admirável prosa poética.

Por ocasião do vestibular, dá palestras ao vivo e via rádio sobre o livro “A Hora da Estela” de Clarice Lispector e outros, a cada ano. Versátil, visita prisões, entrevista personalidades, lê notas do jornal impresso, opina sobre vários temas, se diverte e distrai o povo no rádio, que vai se instruindo e se construindo.

Temos o mesmo gosto pela literatura e ele nasceu exatos três meses antes de mim. Não discutiremos política, futebol e religião, pois temos posições opostas nas três áreas. Em tempos de domínio da televisão e grande penetração da internet, as ondas do rádio ainda são as que chegam mais longe. Ter espaço garantido em meios de comunicação com várias tendências editoriais quase define Benedito Said, aquele jornalista que fala e é falado.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade” – blog http://www.teclai.com.br/

2 comentários:

  1. Mais personagens monteclarenses, e com eles, muitas histórias para contar. Muitíssimo bem contadas, pela talentosa pena de Mara Narciso. Parabéns, amiga.

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  2. Obrigada, Marcelo. O objeto da minha admiração está encabuladíssimo com os elogios. Mas ele acabará por se acostumar. E agradeço a você pela simpatia de sempre.

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