quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Palavras estranhas na boca do povo

* Por Mara Narciso

Uma língua viva aposenta, resgata e cria novas palavras, ou muda o sentido delas, ou ainda, entra numa comunidade sem lhe pedir licença. A televisão através das novelas e das entrevistas impõe palavras ao povo, e gente nada instruída, passa a repetir expressões alheias ao seu dia-a-dia. É esquisito, mas é preciso se acostumar, pois é irreversível. Soa feito um papagaio repetindo sem saber o que está falando.

A TV empurra na goela da população uma cultura pela metade, e dessa forma amplia o vocabulário e a visão de mundo dessas pessoas, como também altera a comida e as roupas. Mesmo quem habita lugares inóspitos, aonde nem ônibus chega, vem falando frases completamente diversas aos seus hábitos. A conversa mostra-se fora do lugar, não faz sentido, causa constrangimento em quem a ouve. Algumas palavras ditas, apenas imitam a original, sendo trocadas letras ou até sílabas inteiras. Caso seja feita uma pergunta, em busca de esclarecimento sobre do que se trata, poderá nem haver resposta. Quem fala sabe apenas o rumo do sentido. Isso quando não inventam comer chia, linhaça, óleo de coco ou outros curiosos cardápios.

Mulheres da zona rural dizem que são ansiosas, ou que o metabolismo está lento depois da menopausa. Outras informam que estão nervosas devido a TPM. Ou foi a tireóide que as fez inchar. Detalhe: algumas que não assinam o nome repetem isso com relativa desenvoltura. São falas despropositais que causam estranheza. Imagine uma mulher de 27 anos, moradora de um lugar perdido, tem oito filhos em casa, não sabe ler nem escrever, e reclama que está com baixa autoestima devido à barriga grande? Qualidade de vida também é outra imposição. Todos querem tê-la. Espero que não comecem a falar em desenvolvimento sustentável. Uma nova palavra funciona como um estrangeiro no meio daquela cultura. Sociólogos saberão explicar como atuam essas invasões de palavras esdrúxulas nessas comunidades. E também como alteram seus valores via linguagem da televisão. É uma anomalia que acaba tornando-se corriqueira.

No geral, essas novidades atuam como liberação dos costumes, mas a atuação mais visível é no comportamento sexual, nas gravidezes não programadas, nas vestimentas ousadas. Contraditoriamente, por desinformação, ainda se tem muitos filhos nas regiões pobres do norte de Minas, o que não impede pessoas excluídas de usarem palavras fora do lugar, extra-contexto, puramente artificiais.

Com essa arma poderosa, que são rádio, TV e internet pensavam-se que as culturas e os sotaques tenderiam a se uniformizar. Não é o que se observa, depois de décadas de convivência. As pessoas poderiam usar essas ferramentas para aprender, o que já foi tentado inúmeras vezes. Como fogem do que tenha caráter educativo, é preciso dar ao programa ares de diversão. A internet, assim como a TV, pode exercer esse papel, porém afugenta a audiência. Questiona-se o real interesse de se educar a população, pois, caso fosse objetivo das redes tirar as pessoas de onde estão culturalmente, utilizariam esse efeito transformador para educar e quase não o fazem. Ainda que setores da educação e intelectuais dirijam graves críticas à televisão, algo se aprende com ela, do pernicioso ao útil.

A programação mostra o que as pessoas querem ver, dizem os entendidos. Clichês: os comerciais estimulam o consumo de bens desnecessários e o endividamento, os jornais televisivos são superficiais e tendenciosos, os programas de variedades ensinam maus hábitos, as novelas acabam com os bons costumes e com a família.

Podem-se desligar a TV, porém as pessoas não a desligam, e sob sutil protesto engolem o que vem de lá, sem colocar tempero próprio. Os comunicadores que se mexam. E não percam a oportunidade de mudar em sua volta, pois botar palavras na boca da população é pouco, diante da força que têm.

 
*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade” – blog http://www.teclai.com.br/

4 comentários:

  1. É o perigosíssimo padrão Globo de uniformidade, que deixa cada um com cara de todo mundo...
    Triste, Mara. O que pode nos salvar são textos assim, conscientizadores. Muito bom.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Que a carapuça também nos assente, pois há momentos em que estamos correndo atrás do que não queremos. É bom parar e fazer a pergunta mágica: eu quero isso? Eu não gosto de falar palavras que estão na moda, e que nem vou repetir. É um protesto singelo, mas ainda assim um protesto. Muito obrigada pela manifestação, Marcelo.

      Excluir
  2. Parabéns, Mara, pelo seu aniversário. Que vopcê tenha muitos e muitos e muitos e produtivos anos de vida para satisfação dos que a amam e a admiram. Um abração!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Agradecida pelos sinceros votos, Pedro, pois a sinceridade é o seu forte, e coincidentemente o meu também.

      Excluir