* Por Marco Albertim
Toda a rua fora ocupada por uma multidão tão ruidosa quanto anônima. Ninguém, nem mesmo os dois homens segurando, cada um em um dos lados, a principal faixa com o nome do candidato, tinham o cuidado de se manterem ariscos ao juízo plebeu de desocupados nas calçadas de um lado e de outro da rua. De desocupados e de centenas de mulheres que, vindas do subúrbio, recendiam a charques de extração incerta, inda que com juras de tornar a panela de feijão um vapor deleitoso de toxinas.
Atrás dos dois, sem sopapos, moças e rapazes, com blusas amarelas uns e vermelhas outros, davam conta do suor abundante nos rostos, no tecido de algodão ralo. O tecido aderindo feito uma papa grossa mas transparente, no mesmo contorno de seios gordos e pontudos. Nos moços sem excessos no tronco, o ofício de carregador de bandeiras, faixas, era um trabalho breve cuja remuneração, vil, enchia-lhes o peito da crença de que logo de se vestiriam do mesmo linho, de variados tons, luzindo os homens de bigodes simétricos, candidatos de voz persuasiva, melíflua.
Os candidatos, de braços dados, olhando para cima, para os lados; convinha deixar a testa intumescer-se de calor, do suor grosso familiar a peões. Em volta deles, os moços coloridos nas vestes e nos rostos, como um cinturão festivo numa corte cujos soberanos, renuídos do trono, pouco se importavam com o cheiro malsão vindo de esgotos, do estreito beco nos fundos da igreja, abrigo de homens e mulheres à noite, improvisando camas e sanitários.
O ajuntamento ocorrera na Praça Maciel Pinheiro, sem a pompa do republicano, com a descontração meio forçada de quem cata apoio no riso próprio de quem cresce na pobreza. O riso do povo é solto, e não se desprende dos apuros na casa de alvenaria fofa. Nos olhos, no entanto, não se distingue a ferida deixada por um estuque caído numa sala, num corredor, numa cozinha. Nos olhos há a temperança de não se render ao vazio do armário minguado de comida, nicho de cobiçada provisão. Nas ruas, nas praças, o riso é farto, farta é a súplica para ouvir o argumento que proverá de esperanças o nicho oco.
São três horas da tarde. A estátua no meio da praça, alisa-se na água que sai de seu pedestal. Os pingos ultrapassam o círculo do tanque. O ruído da água, cúmplice, canta sob uma luz verde que, à noite, junta-se ao cenário pouco vivo de conversas de aposentados nos bancos. Dali a uma hora, a cor pardacenta acentuada pelos sobrados em volta, trará de volta o Recife ainda cinzento; no enredo, um poema de Carlos Pena Filho, mas cinzento.
O cortejo deixou-se inchar, nutriu-se da espreita carente do povo dos Coelhos, da incerteza barroca nas casas do Largo de Santa Cruz, da curva indefesa da Avenida Manoel Borba, fatal a Pena Filho.
O candidato principal ainda não apareceu. O Recife, ora... não é só rios e frevo, é susto. O susto demorado é como um parto, e Recife pariu-se no susto. O susto deu lugar à aparição do candidato. É moço, ele, tem a feição de um anjo barroco, a estatura de um manequim, a voz propícia a sussurros, a gritos. De seu lado, o candidato a vice; o rosto é curtido pelos anos, na nuance dos olhos já com pregas, há o juízo maduro de quem distingue o fel da doçura; no discurso transmudado de quem apoiou a ditadura, na raposice de quem se anuncia com receita própria, sem ervas de esquerda ou de direita.
Na Ponte da Boa Vista, a multidão comprime-se. De um lado e de outro, a passarela. Transeuntes dão as costas ao rio Capibaribe. Camelôs interrompem o pregão. Mendigos sentados soltam os braços, as mãos.
Na rua Nova, a Avenida Dantas Barreto desponta com a fuligem dos ônibus. Não há bandas de música, só a rala ocupação da Praça da Independência entregue ao discurso solitário de evangélicos, a prostitutas mostrando as coxas sob o algodão chinfrim dos vestidos. Uma candidata tem no corpo um vestido branco, o rosto é retangular, da cor de cera; nos dois ombros, sacolas com maços de seu retrato e a legenda de seu gosto – Recife é criativo. Poetisa, Cida Pedrosa não fez uso do microfone. Pena, porque tinha diante de si o cenário animado da poesia.
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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