domingo, 2 de setembro de 2012

Ou dá ou desce – VII

* Por Fernando Barreto

Capítulo 7- Last and least

Os moradores mais velhos do condomínio viviam apáticos em seus microcosmos, cheios de medo na fase final de suas vidas. Tinham medo do dia seguinte. As crianças descontroladas viviam sofrendo com a falta de espaço e estavam sempre cheias de energia ruim por causa do excesso de açúcar no organismo. A repressão sobre elas vinha das câmeras instaladas nos elevadores, nas escadas e no hall de entrada do prédio. Através do canal de TV que transmitia o que essas câmeras captavam, Brito assistia de seu apartamento a essa movimentação sufocada e lembrava que em seus tempos de criança as coisas eram diferentes. Mesmo sendo ele um cara que também foi criado num prédio de apartamentos.

Uma cidade dormitório. As imediações da Avenida Paulista não eram apropriadas para nenhum deles. As ruas ali em volta poderiam ser perigosas demais tanto para os octogenários e nonagenários, quanto para as crianças. Tanto à noite como durante o dia. Alguns dos velhinhos resistiam à idéia de mudarem para cidades menores, pois pensavam que a assistência médica supostamente superior a que tinham acesso em São Paulo poderia lhes dar mais alguns anos de vida. Outros continuavam a viver perto da Paulista por não terem opções práticas de mudança. Teoricamente poderiam vender o apartamento bem valorizado daquela região e comprar uma casa agradável no interior e investir o que sobrasse do dinheiro.

Seu Ciro era um senhor de 82 anos a quem Brito conhecia desde as suas primeiras lembranças, na mais tenra infância. Eram os anos 70 e aquele mesmo prédio não tinha nem ao menos um portão que isolasse a calçada dos canteiros da parte frontal. Não havia a guarita externa para o porteiro. Não se sonhava com câmeras de segurança, naturalmente. E seu Ciro ainda era um cinquentão robusto, com muito cabelo, todo ele tingido de um preto quase azulado. Foi síndico do prédio muito antes de Britão ocupar o cargo. Sua esposa era Dona Michele, uma senhora muito religiosa a quem Brito só via sair de casa para ir à igreja e para levar pedaços de pizza para os porteiros do período noturno. O casal nunca teve filhos.

Fã de Vicente Celestino e Ataulfo Alves, Seu Ciro foi uma influência para que Brito se interessasse por música. A coleção de discos de Seu Ciro era sensacional. Nesse e em outros aspectos, Brito era muito mais influenciado por ele do que por seu pai. Seu Ciro era aposentado e saía de seu apartamento pela manhã para fumar seus cigarros sentado num banco na frente do prédio. Dona Michele não o deixava fumar dentro do apartamento. Seu Ciro já não tinha tanto cabelo na parte de cima da cabeça, mas também não era muito careca. Havia desistido das tinturas muitos anos antes e isso melhorou muito sua aparência, mesmo com a idade mais avançada. Tinha um bigodinho branco aparado e óculos de Buddy Holly. Era baixinho e troncudo. Setenta e cinco quilos para um metro e sessenta e cinco de altura. Não andava curvado nem tinha um aspecto cansado.

A janela do apartamento de Seu Ciro era voltada para os fundos do prédio, de modo que ele não precisava se preocupar com o fato de sua mulher o vigiar de casa. Quando alguma garota que o agradasse visualmente entrava ou saía do prédio, ele a acompanhava com o olhar e quando ela estivesse próxima, dizia: "Sou um seresteiro da velha guarda, minha filha!"

Seu Ciro, assim como Brito, fumava Dunhill. Numa ocasião em que ele cochilou e roncou no banco próximo ao jardim da parte da frente do prédio, um garoto matreiro, sobrinho de Cleitom, substituiu parte do recheio do último cigarro de seu Ciro por maconha. O pobre velhinho fumeta acordou do cochilo e resmungou ao tirar o último cigarro e jogar fora a caixinha vazia. Teria que ir até a padaria comprar mais cigarros. Ele sempre ficava nervoso quando o maço chegava ao fim. Acendeu o cigarro e nem percebeu o cheiro diferente. Apenas tragava e resmungava palavras incompreensíveis.

Enquanto isso, Brito sem perceber desfrutava de alguma paz, porque naquele momento já tinha feito o que considerava necessário para que começasse a tomar uísque sem ter mais preocupações pelo resto do dia. Estava livre dos inconvenientes da urgência. Exercitava sua solidão e seu desprendimento social através do piloto automático. Ouvia o disco Argus, do Wishbone Ash. Sua relação com o pai estava abalada por causa da última briga. Isso acontecia de tempos em tempos. Havia um lado bom nesses períodos, porque caso Britão cometesse alguma atrocidade, Brito poderia simplesmente aproveitar o simples fato de ser oposição automática ao fato. Jogaria isso na cara do velho caso fosse necessário Por outro lado, sua reclusão não permitia que sua vizinhança soubesse das divergências com o pai, ou pelo menos das razões das divergências, ainda que elas se resumissem ao comportamento e estilo de vida de Britão. As brigas não aconteciam o tempo todo porque Brito não as alimentava. Seria burrice fazê-lo. Tentar mudar seu pai seria como querer mudar o resto do mundo. Britão era a parte mais próxima do resto de um mundo que Brito repudiava. Então ele foi fumar na sua sacada e lá de cima viu Seu Ciro gesticulando no que parecia uma alegre conversa com Guido. Ambos estavam sentados encostados no muro do hospital em frente ao prédio.

Brito desceu para saber o que acontecia. Podia evitar, mas não parecia uma situação normal e ele estava curioso. Desceu rapidamente pela escada achando que até o momento em que chegasse no térreo a cena já poderia estar desfeita. Lá embaixo era Cleitom quem estava na portaria. Brito foi novamente chamado de 'pessoa' por Cleitom, mas não se aborreceu porque bem naquele momento que constatou que Seu Ciro e Guido ainda estavam na frente do prédio, sentados do outro lado da rua. Brito rapidamente saiu do prédio e se aproximou, sendo imediatamente saudado por Guido:
- Brito!!! O vovozinho fumou um cigarrinho de carnaval!! – disse Guido.
- Que doidice é essa? Seu Ciro, o senhor conhece o Guido? – perguntou Brito ao mesmo tempo em que constatava que a roupa de Seu Ciro já estava de tal forma suja que a cena lhe parecia quase inacreditável.
- É o filho do Britão!!! – gritou Seu Ciro, antes de se acabar numa bela gargalhada.

FIM

• Escritor

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