terça-feira, 5 de janeiro de 2010




Cem anos do 1º vôo da América do Sul - (Final)

* Por Risomar Fasanaro

O Vôo

Aquele 7 de janeiro ficaria gravado para sempre na história da cidade. E cada cena foi mil vezes repetida por aqueles que a viveram, sempre como novidade, sempre com o mesmo orgulho, o mesmo entusiasmo. Ainda assim, são poucos os que conhecem o feito de Dimitri S. De Lavaud.

Os relógios marcavam 5h30, mas apesar de ser tão cedo, muita gente se reuniu em torno do avião. Eram crianças, jovens e adultos; pessoas que acompanhavam as experiências de Dimitri e seu sonho de voar. Ninguém queria perder o momento que o avião alçasse vôo. Tanto ele como Pellegatti, nervosos, faziam os últimos ajustes no motor.

O sol despontava naquela manhã de verão e a expectativa dos que ali se encontravam era grande. O espanhol que àquela altura já se naturalizara brasileiro realizaria naquela manhã o que o brasileiro Santos Dumont realizara na França quatro anos antes dele.

Dimitri se parecia com Dumont. Ambos eram magros e usavam bigode e além do tipo físico, os dois tinham o mesmo objetivo: voar.

Deu-se o sinal de largada e o aparelho, depois de tomar o primeiro impulso, desceu vertiginosamente uma rampa de aproximadamente setenta metros e alçou vôo. As pessoas atiravam lenços e chapéus para o alto, entusiasmadas com o espetáculo que presenciavam.

A altura do “São Paulo” variou entre dois e quatro metros e foi em direção ao vale do Rio Tietê, por um trajeto de aproximadamente 103 metros. Depois, para decepção do aviador e do mecânico, o motor parou e o aparelho caiu. Mas para o público bastava a glória de ter presenciado o primeiro vôo da América do Sul. Todos comemoravam.

Sobre essa parada repentina, Lourenço Pellegatti me revelou em 1973 que: o motor possuía seis pistões e por isso havia falhado. Se o número fosse ímpar, o movimento seria contínuo e não haveria essa parada.

No dia seguinte, o jornal “O Estado de S. Paulo” noticiou o vôo: “Foi uma descida vertiginosa, numa extensão de 70 metros ao cabo dos quais o aparelho, obedecendo ao leme de profundidade, deixou o solo librando-se no ar.
“E daí, a marcha prosseguiu admiravelmente a uma altura de 2 a 4 metros até a distância de 103 metros, percorrendo-os em seis segundos e dezoito.
“Nesse ponto, o motor... pára de repente e o aparelho cai bruscamente, amolgando as rodas dianteiras.
“Foi, pois, preciso suspender a experiência, mas já se podendo contar para São Paulo o ‘record’ do primeiro vôo sul-americano, com aparelho de inteira concepção e fabricação nacional.”
( “O Estado de S. Paulo” 8/01/1910).

Logo após esse primeiro vôo, Dimitri corrigiu a falha e essa decepção não o impediu de realizar vários vôos com o “São Paulo”, e só desistiu de pilotar quando caiu sobre uma árvore no Parque Antártica. Atendendo aos pedidos da mulher, nunca mais voou. Depois de algum tempo vendeu o aparelho e, a notícia que se teve foi que o avião espatifou-se com seu novo dono.

Dimitri Sensaud De Lavaud

Dimitri nasceu em Valadolid, Espanha, no dia 14 de setembro de 1882. Desde muito cedo demonstrava inteligência viva e curiosa. Irreverente, certa ocasião, já rapaz, ele urinou sobre a polia de uma das máquinas da fábrica do pai, em Osasco e, verificando que a urina não se espalhava, pediu a um dos operários que derretesse chumbo e o derramasse sobre a polia. Verificou que o líquido não se espalhava e, a partir daí, criou os tubos que até hoje se utilizam nos encanamentos de água.

Em 1916, Dimitri foi para os Estados Unidos e, de lá, em 1919, para a França onde registrou várias patentes sobre câmbios automáticos, turbinas a gás, um novo tipo de diferencial e vários tipos de hélices para aviões. Fabricou também um tipo especial de automóvel que é conhecido em todo mundo.

De acordo com a revista “Esso” americana, há 1200 inventos patenteados por ele e como recompensa por várias publicações científicas e todos esses inventos, ele recebeu em 1925 um prêmio da Academia de Ciências de Paris (Prise Menthion) e foi denominado “Chevalier de La Legion d’Honneur”.

Com 25 anos de idade ele morava em Osasco. Era casado com Bherte e tinham três filhos: Georgette, Robert e Gabrielle. Participava de corridas no Rio Tietê, em barcos que ele mesmo construía, auxiliado pelos operários da fábrica do pai. E para desespero da mãe e da avó, confeccionava as velas com finos lençóis de linho, bordados à mão, que elas tinham trazido da Europa.

Uma ocasião, ele deixou a família em desespero. Tenho saído de barco pela manhã para Pinheiros, dizendo que voltaria ao anoitecer, não voltou. O dia já amanhecia quando conseguiu regressar. O barco virara e ele escapou milagrosamente de se afogar. Dimitri também praticava esgrima, mas seu passatempo predileto era ler, principalmente livros técnicos, e jogar xadrez.

Segundo Robert, filho do inventor, seu pai contava que passara várias noites acordado, traduzindo livros franceses e ingleses que recebia do exterior. Pela manhã, os criados encontravam sobre a mesa de jacarandá, muitas folhas de papéis contendo desenhos e cálculos que eles não entendiam.

Foi a partir desses cálculos que ele e o mecânico Lourenço Pellegatti construíram o “São Paulo”, o avião em que realizaram o primeiro voo, não só no Brasil como na América do Sul.

Trinta anos depois do primeiro voo, Dimitri se encontrava em Paris. Pelas fotos dessa época constatamos que ele e a família viviam luxuosamente em uma bela mansão na capital francesa. Mas essa felicidade não durou muito. “No início da segunda guerra, ele havia patenteado uma hélice com passo variável automático e tinha estabelecido contratos com os governos francês e inglês. Durante os conflitos, o inventor foi procurado pelos alemães que exigiam dele inventos de armas mortíferas. Ao recusar-se a atendê-los, teve sua casa invadida, foi torturado e teve o quintal de sua residência todo escavado em busca de inventos que pudessem favorecer os alemães na luta contra os aliados. Muito doente e deprimido com o que lhe acontecera, alguns meses depois foi internado em um hospital de Paris com um enfarte, onde faleceu no dia 25 de abril de 1945”.

Lourenço Pellegatti, o mecânico

Lourenço Pellegatti nasceu no dia 24 de fevereiro de 1891 em São Paulo. Estudou no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo. Foi um dos indicados para trabalhar na construção das grades do Teatro Municipal de São Paulo, o que sempre lhe trouxe grande orgulho.

Recebeu uma medalha de honra por ter sido um dos heróis da Primeira Guerra Mundial.

Durante muitos anos esteve à frente de uma indústria de máquinas têxteis de sua propriedade, no bairro da Lapa. No final dos anos setenta, a fábrica possuía um departamento de fundição de peças onde todo o material utilizado na montagem das máquinas era fundido. Assim, os filhos trilhavam os mesmos caminhos do pai.

Contudo, a importância de Pellegatti para a história é a de ser não apenas o mecânico, mas o amigo que acompanhou Dimitri do início ao fim daquela epopéia.

O Chalé Brícola

Plantado entre árvores, o Chalé Brícola, onde hoje está instalado o museu “Dimitri Sensaud de Lavaud”, nos remete a um passado que o glorifica.

É um casarão antigo, construído por Giovanni Brícola em 1890, muito luxuoso para a época. A memória do primeiro proprietário está presente nas portas de entrada e nas janelas que dão para o fundo do casarão com as iniciais do seu nome em metal. Giovanni Brícola residia em São Paulo e o utilizava como casa de campo.

Na época de sua inauguração era cercado de árvores frutíferas entre elas muitas pereiras; Árvores que perduraram até o início dos anos sessenta. Antigos moradores o descrevem como uma construção muito bonita, pintada em vermelho Veneza, com portas em pinho de Riga e uma belíssima pia de porcelana pintada à mão e a frente cercada com grades de ferro. Tanto as grades assim como algumas daquelas portas originais foram roubadas.

A família Sensaud de Lavaud foi a segunda a residir ali. Algumas pessoas que conheceram o chalé naquela época, bem antes dos danos que sofreu, falam da beleza que era ver os jovens filhos do barão cavalgando nas terras que o rodeavam e que hoje se resume a uma pequena área em torno do museu.

Durante alguns anos ele ficou abandonado, à mercê de vândalos que o invadiram e destruíram grande parte do que nele havia. Moradores de rua ali se reuniam e, nas noites frias acendiam fogueiras no assoalho para se aquecerem. Com isso, destruíram grande parte do piso original. Algumas cenas de um dos filmes do cineasta Zé do Caixão foram realizadas ali.

Em 2006 iniciou-se o processo de restauração do chalé, com um curso de restauração para jovens e adolescentes. Hoje restaurado o casarão adquiriu uma aparência próxima da que tinha quando Dimitri ali viveu.

Fontes:

- Jornal O Estado de São Paulo 19/02/1911;
- O Primeiro Vôo da América do Sul 1969-1970 – Helena Pignatari Werner” Tese de
Mestrado;
- Revista Realidade – Editora Abril - Dez. 1973 –
Robert Sensaud de Lavaud e Lourenço Pelegatti, - Entrevistas concedidas à Risomar Fasanaro, José Pessoa e Rômulo Fasanaro;
- Correspondência familiar: Acervo Robert Sensaud de Lavaud

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

6 comentários:

  1. Que riqueza Ris, parabéns!
    Uma ótima narrativa e que em
    momento algum fica cansativa.
    beijos

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  2. É preciso resgatar histórias como essa, para homenagear os pioneiros, quase revolucionários. Muito boa reportagem.

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  3. Resgate delicioso da vida de quem faz diferença, e sem exigir publicidade, muito menos esperar algo em troca. Grandes homens que vc, cara Ris, fez viajar na sua pena de inspirada narrativa. Parabéns.

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  4. Obrigada,Daniel, Mara,Núbia pelos comentarios tão carinhosos. Como disse Herbert Viana, "o céu de Ícaro tem mais poesia que o céu de Galileu".Amém.
    Tomara que outros pioneiros venham a ser descobertos.
    Beijos nos três
    Ris

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  5. Sempre é bom falar de Osasco, mas há um detalhe interessante, o chalé deve ter sido construído provavelmente em 1898, pois Brícola adquiriu o terreno em novembro de 1897...

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  6. Gostei da sua materia, Parabens!!!mas qual o nome do filme do Zé do Caixao que filmou em Osasco?

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