domingo, 9 de agosto de 2009




Vigor das línguas

* Pedro J. Bondaczuk

O povo é quem faz a língua, seja qual for o idioma a que venhamos a nos referir, para desespero e inveja dos letrados, dos eruditos, dos doutos e sisudos guardiões do conhecimento e do saber. É ele que nomeia, de maneira clara, viva e simples, o concreto e o abstrato e cria verbos de originalidade sem par, nascidos espontaneamente, das suas necessidades de comunicação no cotidiano.

Tanto isso é verdade que, por exemplo, o português que falamos (e que tanto admiro e amo por seus recursos e sua expressividade) originou-se do latim vulgar, o falado pela soldadesca, pelos escravos e pela plebe de Roma e não do utilizado por seus poetas, filósofos e oradores. E não somente nosso idioma teve essa origem plebéia, no modo de se expressar do povo simples e rude, como seus “irmãos”, o francês, o espanhol, o italiano e o romeno, também tiveram.

Aos eruditos restaram os campos da filosofia, da psicologia, da psiquiatria, da sociologia, da antropologia e tantos outros, eivados de jargões, compreensíveis apenas aos iniciados, que criaram, criam e continuarão criando em profusão. Ler textos dessas especialidades, sem um dicionário à mão, é o mesmo que tentar decifrar o sânscrito sem nenhuma noção a respeito ou procurar entender, sem o ínfimo conhecimento do idioma, páginas escritas em japonês, árabe ou chinês. São impenetráveis, herméticos, criptografados, como se escritos de propósito para serem entendidos por pouquíssimas pessoas. É provável que o sejam, sabe-se lá.

Sempre que o povo cria uma nova gíria, alguma maneira diferente e pitoresca de identificar determinado objeto, conceito ou ação, a reação inicial dos gramáticos é a de horror. É a de torcer o nariz e determinar o veto imediato, a liminar proibição, a peremptória interdição daquela palavra ou expressão.

Os professores apressam-se em segui-los e corrigem seus alunos que as utilizem. Consideram errado seu emprego, por exemplo, em provas, o que influencia nas notas que atribuem aos pupilos e, muitas vezes, os reprovam por isso, fazendo com que percam um ano inteiro de esforços.

Mas a força do povo é maior, muito maior do que ele próprio possa sequer suspeitar (os poderosos de plantão sabem seu alcance e, por isso, esmeram-se em táticas de manipulação, para impedir que as multidões amorfas se unam em torno de alguma liderança carismática). A constância do uso popular consagra o que foi antes vetado pelos gramáticos e, quase sempre a contragosto, estes têm que se dar por vencidos e acrescentar, o que repudiaram com tamanho ímpeto e vigor, aos dicionários e à semântica.

Note-se que não é o povo que cria expressões ridículas e desnecessárias que, estas sim, conspurcam e avacalham o idioma. Nunca vi, por exemplo, nenhum gari, ou pedreiro, ou faxineiro etc. utilizar o horrendo “a nível de”, que até recentemente circulava na boca de ministros, secretários de Estado e pesquisadores com vasta coleção de diplomas, sempre que tentavam explicar o que quer que fosse.

Verbos como “alavancar”, “otimizar” e tantas outras excrescências vocabulares são comuns nos setores de comunicação das empresas e corporações, mas nunca na boca dos seus operários. Claro que essas “expressões da moda” não pegam, e jamais serão incorporadas a nenhum dicionário, pois não emergem das camadas populares, as verdadeiras artífices dos idiomas. Não tardam a cair em desuso, substituídas que são por outras tantas asneiras de igual teor.

O Prêmio Nobel de Literatura de 1921,. Anatole France, escreveu a respeito: “O povo faz bem às línguas. Fá-las imaginosas e claras, vivas e expressivas. Se fossem os sábios a fazê-las, elas seriam baças e pesadas”. Vocês já pensaram se, em nosso cotidiano, no bate-papo informal com os amigos no fim de tarde, por exemplo, ou no namoro, na boate, no campo de futebol, no pátio das escolas nos horários de recreio etc. usássemos a linguagem pesada e baça dos eruditos?!

As conversas seriam, certamente, de uma chatice abissal. Consagraríamos bobagens, risíveis e dispensáveis, como o “a nível de” (que não suporto sequer mencionar, mesmo que para a ridicularizar), e os tais “alavancar”, “otimizar” e quejandos, como o suprassumo da perfeição em termos de comunicação. Não, não e não! Nem pensar! Prefiro a ação do povão, revigorando, oxigenando, clareando, vivificando e destacando a selvagem beleza desta “última flor do Lácio, inculta e bela...”

*Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas), com lançamentos previstos para os próximos dois meses. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com

4 comentários:

  1. A lista de asneiras é infinita. Acrescento elencar, acordar, operacionalizar, e outras que perdi, mas não perdendo a oportunidade de citar asqueroso gerundismo. Tudo para falar difícil, mas quer na verdade é lavar as mãos para afirmar que algo foi providenciado e está acontecendo naquele momento. Terrível imitação do inglês, dizem que entrou no Brasil pelo "call center".

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  2. Verdade, Mara. O gerundismo é intragável. É preciso estômago para ouvir seu emprego e ainda assim manter a compostura e não perder as estribeiras. A lista desse tipo de bobagem é tão extensa que daria para dar várias voltas ao mundo. Prefiro a fala criativa do povão.

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  3. O cochicho das ruas imiscui-se habilmente nos mais envernizados salões, onde provoca às vezes certa babel, mas logo se instala como vocabulário. Resistir, quem há de? Esse vigor popular as línguas lambem e se encorpam. Depois, é só falação. Quem bom!

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  4. Caríssimo amigo e irmão nessa nossa quixotesca jornada de divulgar arte e cultura: muito obrigado por seu generoso comentário. E a você também, Mara, com quem tenho tantas afinidades intelectuais. Vocês são nota dez!!! Minto, são nota mil!!!!

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