segunda-feira, 1 de junho de 2009




Falta de espaço

* Por Daniel Santos

Em algum momento, o que era amor desandou. A mulher passou a ocupar a maior parte da cama, além de puxar a coberta só para si, enquanto o marido encolhia-se num desconforto; para ele, incompreensível.

Tanto a mulher se esparramou no leito, que ele passou à sala, mas o sofá de superfície irregular maltratava-lhe a coluna; daí, as insônias. Ia, então, espiar a esposa: ela ganhava espaços de maneira preocupante!

O marido ponderou que deveriam procurar um médico e, em resposta, ela rosnou algo assustador. E mais assustadora tornou-se, quando seu corpo já desmedido forçou a parede e ela ganhou, enfim, a sala.

A cada dia mais imperativa, a mulher confinou o homem na cozinha, onde ele preparava pratarrazes na vã tentativa de saciá-la: ou sustava sua voracidade, ou teria de sair de casa – estava bem certo disso.

Quando se viu, finalmente, na iminência da exclusão, disse à esposa que teria de sair à procura de nova casa onde eles coubessem como antes. Já na rua, apressou o passo. Logo, corria. Na primeira esquina, sumiu.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

8 comentários:

  1. Dizem, Daniel, que o amor alimenta o espírito. E que o desamor é o sal em demasia da carne. O tempero além da conta.

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  2. Quando o espaço se torna pequeno demais, é hora de dizer adeus.
    O fim de um amor é sempre triste.
    Parabéns, Daniel, pela sutileza e elegância do conto.

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  3. Um tanto felliniano, mas com sua marca Daniel! Uma justificativa para a fuga do amor que é sempre triste, embora inevitável no caso. Parabéns pelo texto conciso e paradoxalmente enorme. Abraços.

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  4. E nem precisou da desculpa de que iria comprar cigarros... O realismo fantástico, nesse caso, só é parcialmente fantástico, em vista da frequência que isso acontece. Não digo que tenha vazado paredes, mas em trinta anos de profissão vi muita mulher aumentar 70, 80 ou mais quilos. Em poucas linhas ficou retratado um enorme drama.

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  5. Incrível! Esse texto também me lembra cinema. Cada frase é sinônimo de imagem. Gostei. Abraço, Daniel.

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  6. Poucas vezes li um texto tão conciso e que nos
    transmitisse com tanta sutileza o fim de um grande amor. A sutileza e a concisão com que descreve o final de uma relação afetiva, Daniel, são de um verdadeiro mestre. Parabéns! Lindo e triste.

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  7. O que não cabe em espaço nenhum é este talento enorme do autor, que se esparrama aos alqueires neste sítio literário. Um absurdo de maestria narrativa, renovada semanalmente. Graaaaaaaaaaaaaaaaaaaande Daniel!

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  8. Queridos Murta, Cel, Eve, Mara, Fábio, Risomar e Marcelo, obrigado por palavras tão estimulantes que me deixam com vontadede escrever mais, mais e sempre mais!

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