segunda-feira, 1 de junho de 2009




A anestesia do amor

* Por Tião Martins

Amor é uma coisa só, embora a gente faça o diabo para acreditar que são muitas. Às vésperas do Dia dos Namorados, a reflexão faz sentido, para os que amam demais ou aqueles que julgam que seu tempo de amar já se foi.

Crônica é assim mesmo. Para sobreviver, o cronista tem que enfiar a colher de pau na vida alheia. Se não fizer isso, estará se condenando a vagar sem rumo em volta do seu próprio umbigo. E nenhum leitor ou leitora suporta contemplar todos os dias o umbigo de alguém, por mais saudável, limpo e bem cuidado que pareça.

Entretanto, é preciso escolher com carinho a vida que merece ser invadida, e a médica Mara Narciso, de Montes Claros, por sua maturidade e por compartilhar regularmente seus insights, já se tornou um alvo preferencial, inevitável. Vocês podem até discordar dela, mas não há como lhe negar atenção e respeito.

A menina é do tipo que reserva tempo, inteligência e sentimentos para – além de cuidar do físico alheio – interpretar e compreender os desvãos da alma, que podem ser mais perigosos que qualquer vírus ou bactéria. E seus textos descrevem não só os resultados dessa incansável pesquisa, que começa por ela própria, mas também o caminho que trilha. Caminho minado, como acontece com todos os humanos.

Diante da dor de uma pessoa amada, por exemplo, ela tem a coragem de delegar os cuidados a outro médico e se afastar, sem permitir que um inútil e indesejável sentimento de culpa venha a afetar sua opção. E, com essa atitude, dá uma lição de humildade e sanidade a todos nós, que nos perdemos entre a culpa e a magia, sempre que presenciamos o sofrimento de alguém que amamos.

Em recente artigo, Mara toca de leve – e com delicado pudor – nesse sentimento confuso que nos toma de assalto, sempre que desejamos oferecer algum tipo de alívio à pessoa amada. E, com profunda honestidade, confessa que “o trabalho pode ser uma anestesia potente para os males do corpo e do coração”. O amor também pode. Só que nenhuma anestesia dura para sempre. E não dá para abusar dela.

Refugiar-se no trabalho incessante e exaustivo, para escapar às dúvidas e aos conflitos internos, é estratégia que todos utilizamos, mais dia, menos dia.

Mergulhamos nele para escapar da sensação de impotência, como se quiséssemos provar a nós mesmos que ainda não perdemos a crença no poder mágico do amor. Uns falam compulsivamente; outros escrevem. Há aqueles que racham lenha e muitos que correm três quilômetros em volta de si mesmos. Ou, então, ligam o automóvel e saem sem rumo, para lugar nenhum, enquanto houver lágrimas e combustível.Todas essas formas de ilusão nos confortam e satisfazem, mas só por algum tempo. Teremos que retornar ao real, no momento seguinte, e o real, incorruptível, não tolera propinas e nem o desaforo do esquecimento. “Não adianta fugir, nem mentir pra si mesmo”, diz a letra da canção popular. O real não descansa e não se cala, porque está dentro de você. E estará à sua espera, por mais longa que seja a fuga. A doutora Mara sabe disso. Tanto que, nas linhas finais do seu texto, quase melancólica, mas pacificada, ela e a casa mergulham no silêncio.
- Ouço apenas a ventoinha do computador e as minhas pancadas no teclado. A noite agora é toda minha, para estar só e brincar ou brigar com os meus fantasmas. E para falar com todos os anjos e demônios que vierem conversar comigo.

(Crônica publicada no jornal “Hoje em Dia”, de Belo Horizonte, em 29.05.2009).

* Jornalista e colunista do jornal “Hoje em Dia” de Belo Horizonte.

2 comentários:

  1. Respondi assim ao carinho de Tião Martins, que não me conhece, mas temos uma amiga em comum: Márcia Vieira contou-me sobre a crônica de hoje. Mais uma vez agradeço a atenção que tem me dado. Usou de uma maneira tão delicada para falar da minha dor, que acabei emocionando-me. Decidi enviá-la para parte da minha lista de contato, não por vaidade, mas por me sentir lisonjeada de receber tamanho carinho. Nem sei se mereço.
    -Obrigada Pedro, por reproduzí-la.

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  2. Ah, que honra ter o Tião em nossa companhia. É um belo carpinteiro das palavras.

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