A
filosofia do penetral
* Por
Ariano Suassuna
Há
muito tempo que eu desejava me instruir sobre aquela profunda
Filosofia clementina, para me ajudar em meus logogrifos. Por isso,
avancei:
-
Clemente, esse nome de "penetral" é uma beleza! É bonito,
difícil, esquisito, e, só por ele, a gente vê logo como sua
Filosofia é profunda e importante! O que é que quer dizer
"penetral", hein?
Clemente,
às vezes, deixava escapar "vulgaridades e plebeísmos"
quando falava, segundo sublinhava Samuel. Naquele dia, indagado
assim, respondeu:
-
Olhe, Quaderna, o "penetral" é de lascar! Ou você tem "a
intuição do penetral" ou não tem intuição de nada! Basta
que eu lhe diga que "o penetral" é "a união do
faraute com o insólito regalo", motivo pelo qual abarca o
faraute, a quadra do deferido, o trebelho da justa, o rodopelo, o
torvo torvelim e a subjunção da relápsia!
-
Danou-se! - exclamei, entusiasmado. - O penetral é tudo isso,
Clemente? -Tudo isso e muito mais, Quaderna, porque o penetral é o
"único-amplo"! Você sabe como é que "a centúria
dos íncolas primeiros", isto é, os homens, sai da
"desconhecença" para a "sabença"?
-
Sei não, Clemente! - confessei, envergonhado.
-
Bem, então, para ir conhecendo logo o processo gavínico de
conhecimento penetrálico, feche os olhos!
-
Fechei! - disse eu, obedecendo.
-
Agora, pense no mundo, no mundo que nos cerca!
-
O mundo, o mundo... Pronto, pensei!
-
Em que é que você está pensando?
-
Estou pensando numa estrada, numas pedras, num bode, num pé de
catingueira, numa Onça, numa mulher nua, num pé de coroa-de-frade,
no vento, na poeira, no cheiro do cumaru e num jumento trepando uma
jumenta!
-
Basta, pode abrir os olhos! Agora me diga uma coisa: o que é isto
que você pensou?
-
É o mundo!
-
É não, é somente uma parte dele! É "a quadra do deferido",
aquilo que foi deferido a você, como "íncola"! É "o
insólito regalo"! É "o côisico", dividido em duas
partes: a "confraria da incessância" e "a força da
malacacheta", representada, aí no que você pensou, pelas
pedras. Agora pergunto: tudo isso pertence ou não pertence ao
penetral?
-
Não sei não, Clemente, mas pela cara que você esta fazendo, parece
que pertence.
-
Claro que pertence, Quaderna! Tudo pertence ao penetral! Tudo se
inclui no penetral! Entretanto, para completar "o túdico"
você, na sua enumeração do mundo, deixou de se referir a um
elemento fundamental, a um elemento que estava presente e que você
omitiu! Que elemento foi esse, Quaderna?
-
Sei não, Clemente!
-
Foi você mesmo, "o faraute"!
O
Faraute não, o Quaderna! - disse eu logo, cioso da minha identidade.
-
O Quaderna é um faraute! - insistiu Clemente.
Como
aquilo podia ser alguma safadeza, reagi:
-
Epa, Clemente, vá pra lá com suas molecagens! Faraute o quê?
Faraute uma porra! Faraute é você! Não é besta não?
-
Espere, não se afobe não, homem! Faraute não é insulto nenhum! Eu
sou um faraute, você é um faraute, todo homem é um faraute!
-
Bem, se é assim, está certo, vá lá! E o que é um faraute,
Clemente?
-
Ora, Quaderna, você, leitor assíduo daquele Dicionário Prático
Ilustrado que herdou de seu Pai, perguntar isso? Vá lá, no seu
querido livro de figuras, que encontra! "Faraute" significa
"intérprete, língua, medianeiro"! O curioso é que "a
quadra do deferido" e o "rodopelo" pertencem ao
penetral, mas o faraute, seja "nauta-arremessado" ou
"tapuia-errante", também pertence! Não é formidável ? É
daí que se origina "o horrífico desmaio", o "tonteio
da mente abrasada"! Inda agora, quando pensou no mundo, você
não sentiu uma vertigem não?
-
Acho que não, Clemente!
-
Sentiu, sentiu! É porque você não se lembra! Quer ver uma coisa?
Feche os olhos de novo! Isto! Agora, cruze as mãos atrás da nuca!
Muito bem! Pense de novo naquele trecho do insólito regalo em que
pensou há pouco! Está pensando?
-
Estou!
-
Agora, me diga: você não está sentindo uma espécie de tontura
não?
Eu,
que sou impressionável demais, comecei a oscilar, sentindo uma
tonteira danada, na cabeça. Pedi permissão a Clemente para abrir os
olhos, porque já estava a ponto de cair da sela. O Filósofo,
triunfante, concedeu:
-
Abra, abra os olhos! Como é? Sentiu ou não sentiu a vertigem? Sabe
o que é isso? É a "oura da folia", início da "sabença",
da "conhecença"! A oura causa o "horrífico desmaio".
Este, leva ao "abismo da dúvida", também conhecido como
"a boca hiante do contempto". O abismo comunica ao faraute
a existência do "pacto" e da "ruptura". A
ruptura conduz à "balda do labéu". E é então que o
nauta-arremessado e tapuia-errante torna-se único-faraute. Isto é,
o faraute é, ao mesmo tempo, faraute do insólito-regalo, faraute do
rodopelo e faraute do faraute! Está vendo? O que é que você acha
do penetral, Quaderna?
-
Acho de uma profundeza de lascar, Clemente! Para ser franco, entendi
pouca coisa, mas já basta para me mostrar que sua Filosofia é foda!
Mas o que é, mesmo, penetral?
-
Vá de novo ao "pai-dos-burros"! "Penetral" é "a
parte mais recôndita e interior de um objeto". Mas, na minha
Filosofia, essa noção é ampliada, porque além de abranger a
quadra do deferido e o rodopelo, o penetral abrange também o
faraute, através da subjunção da relápsia! Mas, no momento em que
se fala friamente do penetral, tentando capturá-lo em categorias de
uma lógica sem gavionice negro-tapuia, ele deixa de ser apreendido!
Faça apelo aos gaviônicos restos de sangue Negro e Tapuia que você
tem, Quaderna, e entenda que o penetral "é o penetral",
que o penetral "é"! O côisico, coisica: os cavalos
cavalam, as árvores arvoram, os jumentos jumentam, as pedras pedram,
os móveis movelam, as cadeiras cadeiram, e o faráutico, machendo e
feminando, é que consegue gentere farauticar! É assim que o túdico
tudica e que o penetral penetrala - e esta, Quaderna, é a realidade
fundamental!
-
Arra diabo! - disse eu, de novo embasbacado. - E tudo isso já estava
na Mitologia Negro-Tapuia, Clemente?
-
Estava, estava! Aliás, está, ainda! É por isso que o "Gênio
da Raça Brasileira" será um homem do Povo, um descendente dos
Negros e Tapuias, que, baseado nas lutas e nos mitos de seu Povo,
faça disso o grande assunto nacional, tema da Obra da Raça!
Claro
que era em si mesmo que Clemente estava pensando. Mas Samuel
contestou logo:
-
Nada disso, Quaderna! O "Gênio da Raça Brasileira" deverá
ser um Fidalgo dos engenhos pernambucanos! Um homem que tenha nas
veias o sangue dos Conquistadores ibéricos que fundaram, com a
América Latina como base, o grande Império que foi o orgulho da
Latinidade católica! Portugal e a Espanha não tinham dimensões
para realizar aquilo que, neles, foi somente uma aspiração! Mas o
Brasil é um dos sete Países perigosos do mundo! Por isso, cabe a
nós instaurar, aqui, esse Império glorioso que Portugal e a Espanha
não puderam realizar!
-
Mas como deverá ser escrita a Obra da Raça Brasileira? - perguntei.
- Em verso ou em prosa ?
-
A meu ver, em prosa! - disse Clemente. - E é assunto decidido,
porque o filósofo Artur Orlando disse que "em prosa escrevem-se
hoje as grandes sínteses intelectuais e emocionais da humanidade"!
Samuel
discordou:
-
Como é que pode ser isso, se todas as "obras das raças"
dos Países estrangeiros são chamadas de "poemas nacionais"?
-
O Almanaque Charadístico diz, num artigo, que os Poetas nacionais
são, sempre, autores de Epopeias! - tive eu a ingenuidade de dizer.
Os
dois começaram a rir ao mesmo tempo:
-
Uma Epopeia! Era o que faltava! - zombou Samuel. - Vá ver que
Quaderna anda pelos cantos é conspirando, para fazer uma! Sobre o
quê, meu Deus? Será sobre essas bárbaras lutas sertanejas em que
ele andou metido? Não se meta nisso não, Quaderna! Não existe
coisa de gosto pior do que aquelas estiradas homéricas, cheias
heróis cabeludos e cabreiros fedorentos, trocando de golpes,
montados em cavalos empastados de suor e poeira, a ponto de a gente
sentir, na leitura, a catinga insuportável de tudo!
Clemente
uniu-se ao rival, se bem que por outro caminho. Disse:
-
Além disso, a glorificação do Herói individual, objetivo
fundamental das Epopeias, é uma atitude superada e obscurantista! E
se você quer uma autoridade, Carlos Dias Fernandes também já
demonstrou, de modo lapidar, que, nos tempos de hoje, a Epopeia foi
substituída pelo Romance!
(Romance
d'A Pedra do Reino, 1971.)
*
Dramaturgo,
romancista, ensaísta, poeta e professor, idealizador
do Movimento Armorial, autor das obras Auto da Compadecida e O
Romance d'A Pedra do Reino e
mmembro da Academia Brasileira de Letras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário