quarta-feira, 17 de janeiro de 2018


Fotos: Dione Afonso

Quando um ídolo vira estrela, torna-se lenda

* Por Mara Narciso
 
A profissão de carroceiro era um grande peso para João Faria, mas na segunda quinzena de agosto, virava rei com reinado, capacete bordado encimado com longos penachos de pavão, de onde partiam fitas coloridas cobrindo sua roupa branca, pelas costas, da cabeça aos pés, e uma rainha, Nossa Senhora do Rosário. Seu brilho não era dado por ninguém menos que ele mesmo, catopê desde os oito anos de idade, aos 17 se tornou Mestre do Segundo Terno de Catopês de Nossa Senhora do Rosário. Nas Festas de Agosto, o Mestre se desvinculava do mundo real, e flutuava alto, usando sua crença como asas. A devoção era o que movia aquele homem pobre em bens e rico em fé, humildade, convicção e dom de comando, com os quais orientou dezenas de homens dançantes durante 55 anos. Com simultâneos modéstia e orgulho, mostrava num dos quartos da sua casa, um quase sacrário, os instrumentos de percussão que tinha produzido. Tocava todos, exceto o tambor.
 
Três raças constituíram a Nação Brasileira: os catopês são os negros, os marujos são os portugueses e os caboclinhos, os índios. A congregação dos três grupos católicos são as Festas de Agosto, que em 2017 não foram tão mágicas quanto as demais. O batuque aconteceu, mas não aconteceu aquele batuque inconfundível, que saía apenas da caixa de João Faria. Sem melindrar os demais, que compareceram, houve um vácuo naquela apresentação sem alegria. Estavam ressentidos com a ausência temporária do Mestre, que, adoentado, não acompanhou o cortejo, mas, paramentado, com a fita azul cruzada no peito, da cor do manto de Nossa Senhora, esperou os demais na Igreja do Rosário. Agora, há um buraco permanente. A verdadeira alma dos catopês se foi no dia 10 de janeiro de 2018, aos 74 anos. Partiu o grande artista do ritmo, o pai de todos, aquele catopê tradicional por natureza e devoto convicto das suas tradições religiosas. Adaptou-se o quanto pôde, pacientemente administrou os flashes, a TV e as interpretações. Estudiosos e curiosos explicavam aos catopês o que eles representavam, desde a 1ª festa documentada em 23 de maio de 1838, há quase 180 anos.
 
João Faria, o imortalizado Mestre Catopê foi selo dos Correios, assunto de matérias jornalísticas, capa de revista, presença em diversos vídeos, cuja imagem era a assinatura da festa. Era alguém que se expressava verbalmente de forma pouco clara, e sua comunicação natural, para a qual não encontrava páreo, era a música, o canto, o ritmo, a dança, a organização, a confecção dos instrumentos. Seu som invocava toda a magia do sagrado, levando a multidão para seu mundo irreal. Quando vivo, seus comandados lhe devotavam admiração e respeito cegos, seja na presença ou na ausência do seu guia. Agora, seu neto Yuri Farias Cardoso, de 18 anos, assumirá o posto do avô. No ano passado cumpriu esse papel, agora, lamentavelmente, será em caráter definitivo.
 
-“A cultura montes-clarense, agora, padece com a partida do Mestre João Faria, um catopê de ritmo marcante, inigualável.” Wagner Gomes no perfil da sua mãe Maria das Dores Guimarães Gomes.
-“Grande Mestre João Faria, as Festas de Agosto ficarão mais silenciosas sem o som da sua caixa e sem a alegria contagiante do seu Mestre. Que os anjos e Nossa Senhora do Rosário o recebam com grande festejo.” Solon Queiroz.
-“Figura emblemática das Festas de Agosto. Fará falta. Siga em paz, Mestre!” Terezinha Lígia Fróis.
-“Viva João Faria na Pátria Espiritual! Por aqui se cala mais um tamboril e ficamos mais pobres de catopês. Vá em paz irmão. Você cumpriu bonito seu papel. Que Nossa Senhora do Rosário te receba com amor e carinho”. Tino Gomes.
-“Mestre João Faria, agradecemos por nos ensinar que a alegria e a força de um povo estão em suas raízes culturais” Raquel Souto Chaves.
-“Mestre João Faria era o catopê original, de raiz. Tive a alegria de conviver com ele e desfrutar de sua sabedoria. Era uma pessoa simples e não reclamava de nada.” Pedro Ferreira.
 
O pior não é a morte, e sim defunto sem choro. Estamos calados, murchos, sem percussão, sem voz. Ficamos mudos, mas conformados com as homenagens tocantes dos seus pares, especialmente comovidos com o adeus no cemitério e os lamentos das caixas. João Faria tem sido regiamente pranteado. É pouco, mas consola.



* Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”

 

2 comentários:

  1. Ao que parece, uma grande e irreparável perda para a cultura popular e a religiosidade de Montes Claros. Bonita homenagem. Abraços, Mara.

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  2. Ah, Marcelo, é o nosso catopê referência para todo o sempre. Obrigada!

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