Fotos:
Dione Afonso
Quando
um ídolo vira estrela, torna-se lenda
* Por
Mara Narciso
A
profissão de carroceiro era um grande peso para João Faria, mas na
segunda quinzena de agosto, virava rei com reinado, capacete bordado
encimado com longos penachos de pavão, de onde partiam fitas
coloridas cobrindo sua roupa branca, pelas costas, da cabeça aos
pés, e uma rainha, Nossa Senhora do Rosário. Seu brilho não era
dado por ninguém menos que ele mesmo, catopê desde os oito anos de
idade, aos 17 se tornou Mestre do Segundo Terno de Catopês de Nossa
Senhora do Rosário. Nas Festas de Agosto, o Mestre se desvinculava
do mundo real, e flutuava alto, usando sua crença como asas. A
devoção era o que movia aquele homem pobre em bens e rico em fé,
humildade, convicção e dom de comando, com os quais orientou
dezenas de homens dançantes durante 55 anos. Com simultâneos
modéstia e orgulho, mostrava num dos quartos da sua casa, um quase
sacrário, os instrumentos de percussão que tinha produzido. Tocava
todos, exceto o tambor.
Três
raças constituíram a Nação Brasileira: os catopês são os
negros, os marujos são os portugueses e os caboclinhos, os índios.
A congregação dos três grupos católicos são as Festas de Agosto,
que em 2017 não foram tão mágicas quanto as demais. O batuque
aconteceu, mas não aconteceu aquele batuque inconfundível, que saía
apenas da caixa de João Faria. Sem melindrar os demais, que
compareceram, houve um vácuo naquela apresentação sem alegria.
Estavam ressentidos com a ausência temporária do Mestre, que,
adoentado, não acompanhou o cortejo, mas, paramentado, com a fita
azul cruzada no peito, da cor do manto de Nossa Senhora, esperou os
demais na Igreja do Rosário. Agora, há um buraco permanente. A
verdadeira alma dos catopês se foi no dia 10 de janeiro de 2018, aos
74 anos. Partiu o grande artista do ritmo, o pai de todos, aquele
catopê tradicional por natureza e devoto convicto das suas tradições
religiosas. Adaptou-se o quanto pôde, pacientemente administrou os
flashes, a TV e as interpretações. Estudiosos e curiosos explicavam
aos catopês o que eles representavam, desde a 1ª festa documentada
em 23 de maio de 1838, há quase 180 anos.
João
Faria, o imortalizado Mestre Catopê foi selo dos Correios, assunto
de matérias jornalísticas, capa de revista, presença em diversos
vídeos, cuja imagem era a assinatura da festa. Era alguém que se
expressava verbalmente de forma pouco clara, e sua comunicação
natural, para a qual não encontrava páreo, era a música, o canto,
o ritmo, a dança, a organização, a confecção dos instrumentos.
Seu som invocava toda a magia do sagrado, levando a multidão para
seu mundo irreal. Quando vivo, seus comandados lhe devotavam
admiração e respeito cegos, seja na presença ou na ausência do
seu guia. Agora, seu neto Yuri Farias Cardoso, de 18 anos, assumirá
o posto do avô. No ano passado cumpriu esse papel, agora,
lamentavelmente, será em caráter definitivo.
-“A
cultura montes-clarense, agora, padece com a partida do Mestre João
Faria, um catopê de ritmo marcante, inigualável.” Wagner Gomes no
perfil da sua mãe Maria das Dores Guimarães Gomes.
-“Grande
Mestre João Faria, as Festas
de Agosto ficarão mais silenciosas sem o som da sua caixa e sem a
alegria contagiante do seu Mestre. Que os anjos e Nossa Senhora do
Rosário o recebam com grande festejo.” Solon Queiroz.
-“Figura
emblemática das Festas de Agosto. Fará falta. Siga em paz, Mestre!”
Terezinha Lígia Fróis.
-“Viva
João Faria na Pátria Espiritual! Por aqui se cala mais um tamboril
e ficamos mais pobres de catopês. Vá em paz irmão. Você cumpriu
bonito seu papel. Que Nossa Senhora do Rosário te receba com amor e
carinho”. Tino Gomes.
-“Mestre
João Faria, agradecemos por nos ensinar que a alegria e a força de
um povo estão em suas raízes culturais” Raquel Souto Chaves.
-“Mestre
João Faria era o catopê original, de raiz. Tive a alegria de
conviver com ele e desfrutar de sua sabedoria. Era uma pessoa simples
e não reclamava de nada.” Pedro Ferreira.
O
pior não é a morte, e sim defunto sem choro. Estamos calados,
murchos, sem percussão, sem voz. Ficamos mudos, mas conformados com
as homenagens tocantes dos seus pares, especialmente comovidos com o
adeus no cemitério e os lamentos das caixas. João Faria tem sido
regiamente pranteado. É pouco, mas consola.
*
Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia
Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de
Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”
Ao que parece, uma grande e irreparável perda para a cultura popular e a religiosidade de Montes Claros. Bonita homenagem. Abraços, Mara.
ResponderExcluirAh, Marcelo, é o nosso catopê referência para todo o sempre. Obrigada!
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