Considerações em torno da amizade
A amizade é um sentimento que sempre me
intrigou. Venho, há anos, tentando racionalizá-la, na condição de
estudioso do comportamento, buscar suas raízes, pesquisar as causas que a
materializam e a concretizam e quanto mais me aprofundo, mais atônito fico.
Inúmeras pessoas são céticas a esse propósito. Não acreditam que dois
indivíduos, diferentes em tudo (em gostos, idéias, visões de vida etc.etc.etc.)
possam ser amigos, de maneira desinteressada, sem que um pense em levar algum
tipo de vantagem sobre o outro, ou que ambos tenham essa intenção. Tenho pena
de quem pensa assim. Esses dificilmente manterão, algum dia, amizade com
alguém, seja lá quem for, dada sua patológica desconfiança. Não têm noção do
que perdem. Há muita gente que age e que pensa dessa maneira. Que acha que a
amizade só surge da necessidade de quem as ajude em alguma coisa ou lhes dê
alguma espécie de lucro. Encaram todos como potenciais concorrentes, como
possíveis adversários, quando não como inimigos. E tornam-se infelizes, amargos
e... perdedores.
A história registra amizades notáveis,
sólidas, a salvo de abalos e de crises, indestrutíveis, que superaram testes e
conflitos que poderiam arruiná-las, por terem arruinado muitas outras
semelhantes, e sobreviveram. E não somente isso: cresceram, se fortaleceram e
se consolidaram. A Bíblia nos relata um desses casos: o de Davi e Jonatas,
relatado, em detalhes, no livro de I Samuel. Como não sou teólogo, recorro a um
especialista na matéria, no caso o Reverendo Welerson Alves Duarte (como
poderia ser outro, não importa de que denominação cristã) para esclarecer esse
episódio. O referido clérigo classificou essa profunda ligação afetiva entre
pessoas com biografias e interesses tão heterogêneos e díspares (potencialmente
conflitantes), como uma “aliança de amor” Por ela, uma das partes abriu mão até
mesmo de um reino, no caso o de Israel, em favor do amigo, sem se aborrecer e
nem vacilar em momento algum.
Explico para os que não são
familiarizados com textos bíblicos. Jonatas era filho de Saul, o primeiro rei
israelita. Este ascendeu ao trono quando este povo, até então nômade, mal
começava a se organizar politicamente como Estado, ou mais especificamente, como
nação. Jonatas era, portanto, herdeiro natural do trono, como o primogênito do
monarca. Ocorre que Davi, que não fazia parte da família real, era tido e havido
pelos juízes e profetas como o escolhido por Deus para conduzir os destinos de
Israel. Qual seria a reação natural e humana do sucessor do trono, mesmo ligado
por sentimento de profunda amizade pelo “rival” (que é o que Davi era), ao
tomar ciência dessa circunstância? Seria, sem dúvida, o de defesa dos próprios
interesses. Não é o que você faria, caro leitor? É o que qualquer pessoa faria.
Essa amizade seria cercada de
desconfiança. A parte aparentemente prejudicada acreditaria que o amigo, de
alguma forma, simularia tal sentimento exclusivamente por interesse, agindo de
forma a apunhalá-lo pelas costas. Qualquer um que não confiasse cegamente no
amigo agiria assim. Saul agiu, vendo nessa amizade (em cuja sinceridade não
conseguia acreditar) como mero ato de oportunismo para usurpar a coroa que
deveria caber ao filho. Tanto que chegou, até, a tentar matar Davi. Mas Jonatas...
não pensou assim. Confiou, até o fim, no amigo, sem questionar suas intenções e
nem desconfiar delas. Pagou, por isso, o preço da perda do trono e nem assim se
indispôs contra Davi. .
Concordo com a conclusão do Reverendo
Walerson, após analisar esse episódio bíblico: “Amigo é aquele com quem podemos
ser nós mesmos. Ser nós mesmos implica uma apresentação sem reservas e
espontânea de si mesmo, sem o autocontrole exigido pelas regras da polidez. Li
certa vez que amigo é aquele com quem se pode pensar alto”. E não é?!! Davi e
Jonatas pensaram alto. E não se espantaram com o pensamento um do outro. Tenho
minhas dúvidas se nos dias atuais uma amizade, por mais sólida e sincera que
seja, resistiria às circunstâncias que a descrita na Bíblia resistiu. Não
garanto que não, mas não tenho tanta fé assim em sua resistência. Há muitas
formas de identificarmos amigos potenciais, antes mesmo que venhamos a conhecê-los
em profundidade. Uma, por exemplo, é certa identidade de sentimentos, idéias e
comportamentos, que nos conduzem a uma instintiva empatia em relação a determinada
pessoa.
O escritor Carol S. Lewis sugere
maneira mais simples e direta desse reconhecimento. O autor de “Alice no país
das maravilhas” afirma: “A amizade nasce no momento em que uma pessoa diz para
outra: ‘O quê? Você também? Pensei que eu fosse o único!’”. Claro que há outras
formas de identificação, até porque, nem sempre é necessário (ou pelo menos não
é indispensável) que uma pessoa pense e sinta exatamente como nós pensamos e
sentimos para privar da nossa amizade. Esta, no entanto, é a forma mais comum,
e também a mais segura, para o reconhecimento de um amigo em potencial. E
também, é mister ressaltar, para reconhecer algum inimigo que seja, se não um
perigo para nós, pelo menos grande incômodo.
Vocês já notaram como há pessoas que
nos despertam instintiva antipatia, sem que tenhamos convivido com elas e
sequer trocado palavras, apenas pela observação delas à distância? Não afirmo
que sejam inimigos potenciais (às vezes nem são), mas raramente conseguimos
estabelecer relação de amizade com elas. Por que isso acontece? Nunca consegui
entender. Aspiramos ser reconhecidos por nossos méritos, mesmo que estes sejam
ínfimos e, se possível, não apenas valorizados, mas até estimados por eles. Nada
no mundo pode ser mais gratificante do que o fato de sermos considerados
“preciosos” (se possível indispensáveis) para alguém. Esta é, no meu entender,
a verdadeira grandeza pela qual vale a pena lutar.
Para tanto, porém, é necessário que conservemos
a inocência das crianças. Ser inocente, ressalte-se, não é ser ingênuo como
muitos podem pensar, mas jamais agir com malícia e com segundas intenções em
relação a ninguém. Em vez de eventual deficiência, ela é, na verdade, a mais
clara manifestação de sabedoria. Eduardo Sá escreveu: “Ser inocente é ter um
olhar longo e aberto... É estar, ombro a ombro, com todo o universo e ser
grande, ter brilho e voz (e vida) só porque se é precioso para alguém... Talvez
por isso, só os sábios sejam inocentes”. Afinal, são seres preciosos para o
mundo por aquilo que são, sem máscaras, enganos, subterfúgios ou exageros, e
não pelo que eventualmente têm. Por isso, consideramo-los “amigos”, mesmo que nunca
os tenhamos conhecido pessoalmente e que tenham, até mesmo, morrido décadas,
séculos ou milênios antes do nosso nascimento. É estranho, estranhíssimo, esse
sentimento da amizade no qual, no entanto, creio sem reservas e ao qual estou
disposto a me entregar sem reservas, de coração, corpo e alma.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Inacreditável a extrema amizade contada na Bíblia. Eu a desconhecia.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirO escritor Amós Oz questiona interpretação do personagem Judas. No novo livro do escritor não atribui ao apóstolos de Jesus o papel de traidor retratado na Bíblia. Acredito mais na versão do escritor Amós OZ. " Muitas pessoas estão furiosas. É maravilhoso vê-las discutindo..., Estão sendo obrigadas a repensar a história" (sic). Publicou na Folha de Pernambuco, por Karla Monteiro " comenta o autor por telefone, de sua casa em Jerusalém." O meu livro Jesus já está no prelo. Conversando ontem com alguns religiosos que leram a minha poesia "Verdade & Mentira", estou vendo quase como o Oz, "ele quer mais é ver o circo pegar fogo".
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