Eremias
Delizoicov, presente
* Por
Urariano Mota
Recebi um convite para
uma homenagem a Eremias Delizoicov. O convite me chegou por email de Renan
Quinalha, assessor da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, com estas
palavras:
“Escrevo porque faremos
uma audiência pública da Comissão da Verdade na antiga Escola Técnica Federal
de São Paulo e lemos um belo relato que você fez sobre a amizade entre vocês
chamado ‘Vesti azul’.
Em primeiro lugar, devo
esclarecer que esse convite é uma honra desmedida, pois jamais poderia imaginar
que um texto sobre o heroico Eremias pudesse reverberar cinco anos depois. Em
segundo lugar, esclareço que apesar de não comparecer à justa homenagem ao
bravo socialista, à cerimônia eu vou com o melhor que posso. Ou seja, com a
minha forma preferida, que nem precisa da minha insignificante pessoa. Por
isso, recupero aqui o texto que escrevi há cinco anos.
Vesti azul
Urariano
Mota
Quando vem o primeiro
de abril, sempre me lembro do que chamavam a revolução de 31 de março. A
história oficial sempre antecipou em um dia o golpe de 64 para evitar o
ridículo. E aqui e ali volta para mim o terror daqueles anos na forma de
pessoas e canções. Lembro, por exemplo, de Eremias Delizoicov, a quem conheci
na Escola Técnica Federal de São Paulo. O menino que eu vira em 1968 não
anunciava o cadáver de 18 anos, perfurado de balas, o rosto irreconhecível
porque uma só ferida, os cabelos tão úmidos, tão grossos por coágulos de
sangue, que davam a impressão de flutuar no chão seco. Nada havia naquele
cadáver que lembrasse o jovem que eu conhecera. Eremias não era aqueles olhos
apertados, a boca aberta à procura de ar, a lembrar um afogamento.
“Vesti azul, minha
sorte então mudou. Vesti azul, minha sorte então mudou…”, não, não pensem que
enlouqueci. Há uma coerência entre essas canções despretensiosas, alegres,
leves, e os cadáveres dos terroristas na ditadura militar. Não pensem jamais
que vicejam hinos do Drácula em épocas sombrias, de repressão. Pelo contrário.
Na Escola Técnica
Federal de São Paulo, Eremias Delizoicov foi a minha salvação no meio daqueles
meninos burgueses, lembro. A Escola Técnica daqueles anos possuía alunos da
elite econômica do Brasil. Certo dia, percebi que um jovem gordo, que se vestia
com blusões de couro tão natural como uma segunda pele, era filho do dono da
Aços Villares. E eu então me encolhi mais em minha camisa de algodão, nos 10
graus do inverno paulistano. A conversa daqueles alunos toda era sobre carros,
motos, motores, esportes.
Onde um amigo, uma
alma, um leitor, um irmão que entendesse e falasse sobre Platão, Descartes, os
grandes inventos da humanidade, a música de Chopin? Quando me perguntavam sobre
máquinas, potências de motores, eu lhes respondia que mais me preocupava O
Discurso do Método. Um ridículo imenso caía então sobre o nordestino que não
possuía nem bicicleta.
“Pensam que a pobreza é
lixo, e que rapaz pobre não tem coração”. Não, não pensem que enlouqueço ao
lembrar essas canções melosas, adocicadas, daqueles férreos anos. “Estava na
tristeza que dava dó, vivia amargamente e andava só”, lembro, tão nitidamente
quanto lembro a diferença, o contraste dessa canção com a vida que não poderia
brotar, de um mundo reprimido naqueles anos. “Que azul é a cor do céu, e do seu
olhar também… Vesti azul, minha sorte então mudou”, cantava Simonal. Por não
ter camisa azul, eu procurava o azul do espírito. Uma coisinha estúpida, a
procurar uma alternativa que não fosse pular fora da vida.
Ao escrever agora, não
resisto ao impulso de desejar o impossível, que fôssemos mais maduros em 1968.
Se não maduros, pelo menos profetas, leitores do futuro, videntes.
A morte torna as
pessoas mais razoáveis e transparentes à humanidade. Se não todas as mortes,
pelo menos algumas dão um vulto a essas pessoas que antes não víamos. Eremias
morreu como um herói, permitam-nos dizer. O aparelho onde estava caíra. Fora
entregue por um outro jovem preso, que não suportara as torturas. Cercado por
forças do Exército, Eremias sozinho resistiu. Resistiu à bala, sem nenhuma
esperança. A distância nos permite dizer que ele, naquele tiroteio cerrado,
chamava a atenção dos demais companheiros fora. Que a casa não era mais segura,
para ninguém. Outra hipótese que nos ocorre é a de ele saber que não havia mais
saída, se caísse vivo. A saber, não haveria mais saída de continuar vivo, sem
delatar.
Talvez ele tenha
querido evitar, no fim e enfim, ser uma coisinha estúpida, a balançar nervoso
numa câmara de tortura. Algo estúpido, tão estúpido quanto um “Vesti azul” de primeiro
de abril.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife” e
“Dicionário amoroso de Recife”. Tem
inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
Um relato cru como este morde a nossa alma, e o que a realidade não fez com esses meninos? Quantos sonhos não sonhados, quantas vidas jogadas nos cantos? É ler e nos deixarmos levar pela emoção. Uma parcela do povo quer a volta da ditadura, para reduzir a corrupção, alegam. Como disse o meu filho, de algo que ele leu na internet: é como ver um bode sobre o sofá e tirar o sofá.
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