Eu tenho muita coisa para fazer comigo mesmo
* Por
Marcelo Sguassábia
Estar só e inerte é quase um incômodo. Um sentimento de culpa atormenta
as pessoas quando não encontram alguma coisa para fazer. E alguma coisa pode
ser qualquer coisa que não seja estar com elas. O fato de se encontrarem
consigo as amedronta, o silêncio é confundido com inoperância e odeiam a
possibilidade do ócio criativo como fomentador de ideias. É preciso dar sentido
utilitário a tudo, pois tempo fazendo nada é tempo jogado fora.
Já eu, particularmente, acho que sou uma razoável companhia para mim. E
não vejo a hora de trocarmos uma figurinha, sempre que temos oportunidade, para
estreitarmos o vínculo.
Confesso que entre eu e mim ainda não há suficiente empatia, mas esse
estranhamento é compreensível entre os que não se conhecem a fundo. Com o tempo
tudo tende a melhorar, depois que formos morar juntos e dividir a escova de
dentes. Pelo que li em alguns almanaques de autoajuda, a tendência é irmos nos
afeiçoando a ponto de não fazermos mais nada a não ser que seja a quatro mãos.
Como disse no título, eu tenho mesmo muita coisa pra fazer comigo. De
cara, o que nunca fiz e que me atiça desde os 8, mais ou menos: deixar um
gravador ligado no criado-mudo para flagrar tudo o que falo dormindo, quando
dou a sorte de pegar no sono. Mas me desanima a possível decepção de ouvir
horas de grunhidos ininteligíveis, quando for conferir o resultado.
Há também algo de saneador e instigante na arrumação de gavetas. Dando
uma limpa e organizando as da casa, a nova ordenação parece refletir nos
armários da mente. O que favorece o relacionamento entre ambas as partes, ou
seja, entre eu e mim.
Poderia citar outras centenas de formas de ficar mais íntimo de si.
Inspirar pelo nariz e expirar pela boca, mastigar 64 vezes cada bocado de
comida, aproveitar o tempo na ergométrica para fazer meditação, olhar para os
detalhes do seu rosto (e não para o caminho da lâmina) quando faz a barba.
Presumo que, no meu caso, ajudaria bastante ir à cata das fotos que
faltam de mim. Desde sempre, sou eu quem tira as fotos em todas as ocasiões.
Quero procurar quem fez fotos minhas, sem que eu soubesse, compadecido da falta
de registros de mim mesmo para a posteridade. Onde a minha foto batendo fotos
dos outros? Quem cometeria, anonimamente, esse ato solidário?
Embora tentasse esconder de mim, eu sempre soube que Papai Noel não
existia. E tão logo ganhei altura e idade suficientes para carregar um saco
acetinado de brinquedos e meter na cara uma escrota barba de algodão, passei a
ser o Santa Claus oficial da família. Sacanagem. Fingindo ser outro, deixava de
novo de ser eu. E ia adiando sempre para o próximo Natal o presente mais
cobiçado: dar-me embrulhado para mim mesmo.
*
Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).
Louco delírio, algo esquizofrênico, e além disso, curioso e divertido. Quem pensa assim não sente tédio, nem mesmo quando está só.
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