O inventor da pedra
* Por
Cecília Prada
Caro poeta Drummond:
como é sabido, você deu à humanidade essa contribuição, fez esse favor: nos
fazer notar que ela estava ali, na vida de cada um de nós. Que a devíamos ver,
aceitar, a pedra – que pensávamos, antes, como coisa a ser ignorada por
vergonhosa no heroísmo solitário, inglório, de ter de lutar com ela, chutá-la
despedaçando o dedão, diariamente. Inutilmente.
O
poeta só não disse como, exatamente, ela era, essa pedra. Como ele a via, a sua
pedra pelo menos. Para nos dar mais conforto. Não – que comodismo hein? Apenas
nos disse: bem, ela está aí, a pedra, não há como negar, a pedra no caminho é
parte integrante da condição humana. É a própria condição da humanidade.
Disse,
repetiu, "no meio do caminho", como se fosse apenas pedra à toa,
arenosa, esfarelenta, areia na ampulheta (do tempo?) vira prá cá vira prá lá
tanto faz. E se foi, acender seu cachimbo e ficar lá sentado – empedrado – no
banco da orla, de costas para o mar. Parece que para não
ver pedra tamanha logo ali como viemos vindo vida afora imaginando tamanho peso
cor e resistência da pedra drummoniana, da pedra consentida – ou pelo menos
denunciada?
Houve quem sacudisse os
ombros: ora quê pedra? Formação calcárea, com certeza. Friável. Não aguentará o
primeiro aguaceiro do verão. Na presunção da juventude: a gente resolve, pode
até tentar dissolvê-la entre os dedos, quer ver? Eu... E aí (agora confessamos)
ficamos por muito tempo, anos escondendo dedos escalavrados em luvas de
precária utilidade. Guardando nas palmas o gosto perverso da pedra.
Ora,
pedregulho com certeza. Calhau. Coisa de somenos. Chutado? – unha do dedão
cindida ao meio, inflamada, purulenta, pela eternidade.
Questionado, o poeta deu
seu sorrizinho de Gioconda e se refugiou em uma frase (sábia, convenhamos):
"Uma pedra no caminho / ou apenas no rastro, não importa".
* Escritora e jornalista, estreou na década de 50 no jornal A Gazeta de São Paulo. Como
jornalista trabalhou em vários jornais e revistas de São Paulo e Rio de
Janeiro, e em 1980 ganhou o Prêmio Esso de Reportagem pela Folha de São Paulo.
É detentora de quatro prêmios literários e tem cinco livros de contos
publicados, dentre os quais: O caos na
sala de jantar, Estudos de interiores para uma arquitetura da solidão e Faróis estrábicos na noite, além de
vários livros sobre jornalismo. Seus contos e artigos figuram em revistas
estrangeiras e em antologias brasileiras e do exterior. Foi diplomata de
carreira (turma de 1957) do Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações
Exteriores. Atualmente reside em Campinas (SP), onde termina um romance
autobiográfico.
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