“Admirável
Mundo Novo” pode não ser novo, mas continua admirável
* Por
Mara Narciso
A ficção científica
“Admirável Mundo Novo” foi escrita pelo inglês Aldous Huxley, num mundo assim:
a economia viveu o crash da bolsa de Nova Iorque, a indústria produzia com
rapidez nas linhas de montagem, o padrão de beleza era Marlene Dietrich, havia
um nacionalismo excessivo, regimes totalitários e ameaça à paz. Era 1932, e o
livro vendeu um milhão e meio de exemplares, chegando ao Brasil em 1972. Fez
sucesso por aqui, pois estávamos numa ditadura, com controle de mentes e
pensamentos, e as pessoas sonhavam com a liberdade. Contextualizado o livro,
falando no Clube de Leitura Felicidade Patrocínio, a Doutora em Literatura
Ivana Ferrante Rebello começou pelo enredo.
Segundo a palestrante,
o autor criou um lugar em que dez países desenvolvidos viviam em paz. A
sociedade com alto padrão de civilização era composta de castas, sendo Alfa,
Beta, Gama, Delta e Ípsilon, e dentro de cada uma delas as pessoas eram
parecidas, tinham funções específicas, e se vestiam de uma mesma cor. Os
“Alfas” mantinham a ordem criando leis e comandando. Contemplar a natureza era
condenado por ser de graça, arte e livros eram tidos como ameaças, pois fariam
pensar, o que estremeceria o equilíbrio social. Era obrigatório ser feliz. Os
sentimentos negativos como medo e dor eram expurgados pelo condicionamento e
pelo Soma, droga fornecida pelo governo para todos, desde criança, mais a
música repousante.
Continuando, Ivana
Ferrante disse que os conceitos pai e mãe eram obscenos. Por serem figuras
perigosas, a família não existia. As pessoas eram produzidas em série no Centro
de Incubação através da inseminação artificial. Um só ovo poderia ser repartido
em até 96 pessoas iguais. As mulheres eram semelhantes entre si, plastificadas,
belas, asseadas, perfeitas, consideradas “pneumáticas”. Lenina Crowne era uma
delas. Eram induzidas a ter vários relacionamentos. A vida durava 60 anos e era
proibido envelhecer. Com esta idade, morriam alegremente, sendo então cremadas,
e viravam adubos.
Bernard Marx era um exemplar
Alfa. Recebeu álcool por engano no Centro de Incubação e ficou mais baixo que
os outros, sendo complexado, e ao mesmo tempo crítico e questionador. Reclamava
da música alta, queria observar o mar e conversar. Lenina não o entendia, mas
ela o interessava. Disse a palestrante que mesmo com todo o controle, algo
escapa e o ser humano não se deixa ser totalmente manipulado. A ânsia, a sede e
a sensação eterna de incompletude são a centelha humana.
Bernard e Lenina vão
passear em Malpaís, um lugar selvagem. Lá, décadas antes, Linda e Tomakin, o
Diretor de Incubação e Condicionamento, tiveram um caso amoroso e ela
engravidou, “inconveniência mais escatológica, que pornográfica”, diz o livro.
Esta situação abominável e impura deixa as pessoas ruborizadas. Seres únicos e
individualidade não existiam. “Linda ficou para trás, morando com os selvagens,
sendo por eles marginalizada”, explica Ivana Ferrante. O choque de civilizações
a excluiu assim como ao seu filho John, que nasceu lá. O menino não pertencia a
nenhum dos mundos. Ouvia a mãe contar do Admirável Mundo Novo e do seu trabalho
no Centro de Incubação, mas pouco dele entendia. Aprendeu a ler, e encontrando
a obra de Shakespeare, poesia de alta densidade, leu tudo, o que lhe provocava
fortes emoções. Linda recebia vários homens em sua cama, conforme lhe era
exigido no mundo civilizado, porém as mulheres da tribo tinham ciúmes e a
condenavam, e seu filho era apedrejado. Bernard e Lenina conhecem a história e
levam os dois para a civilização, onde as pessoas os colocam numa redoma como
objeto de curiosidade e visitação. Houve nova discriminação, pois a sociedade
teme o diferente. No início John gosta, mas nota que os seres são robotizados,
e ainda assim se apaixona por Lenina. Para se expressar, declama Shakespeare,
que lhe serve para explicar a humanidade. Todos riam quando ele se referia aos
sentimentos. “John é o personagem mais rico”, diz Ivana, “e vai se tornando a
cada dia mais isolado”.
A palestrante disse que
o encontro público de John com o Diretor é uma cena dolorosa que faz seu pai
cair em desgraça. Linda, decaída, gorda, envelhecida e com os dentes estragados
é deixada de lado pelos civilizados, passando a consumir grandes quantidades de
Soma. Como a dor e a tristeza são proibidas, só lhe resta se embriagar. Morre
de overdose e John fica deslocado numa sociedade inodora e insípida. Tem
destino triste, pois fervendo por dentro, grita que quer poesia, dor, tristeza,
sofrimento, insegurança e medo. Então, reivindica ao Diretor o direito de
trabalhar num farol guia. John se mata, e seu cadáver é encontrado dependurado,
como um pêndulo, indicando as direções. O livro não dá respostas e as perguntas
ficam em nós. As pessoas tinham amor a sua escravidão, e como muito lhes foi
dado, ficaram reduzidos a passividade e ao egoísmo. “Oh Admirável Mundo Novo,
quem poderá explicar seres tão perfeitos?”, destaca a palestrante.
Numa segunda parte
Ivana Ferrante Rebello mostra um vídeo, e abre a discussão, expondo o motivo de
a arte ter sido expurgada daquele mundo uniforme. Por ser única foi banida,
assim como a poesia. O poeta tem visão aguçada, sensível, acurada, nota o que
ninguém vê. “Somos pessoas únicas em nossas particularidades”, diz ela. Maria
Luiza Silveira Teles, por sua vez, falou que a Fluoxetina seria o Soma de hoje.
E continuou: “As escolas atuais uniformizam, exigem silêncio, arte e música
estão do lado de fora, há cuidado com os títulos dos livros, e os pais vigiam,
querendo Literatura fácil e atual”.
Para Ivana o mundo
contemporâneo tem dificuldade em se indignar. “A ditadura, religião, sociedade,
nacionalismo, obrigatoriedade da Língua Portuguesa são fatores de manipulação
das consciências”, manifestou ela. As pessoas são apáticas, e diante de uma
obra de arte não gastam mais do que três segundos. Há um pragmatismo, tempo é
moeda e contemplar é ação não valorizada. “Para quê tanto livro de poesia?”
Indaga e responde a palestrante: “não servem para nada”. E ainda, “quem não lê
não se abre para a arte, e sem ela se esquece da própria humanidade. Arte e
Literatura nos acordam”.
Foi colocada diante do
público uma bela e instigante escultura de figura humana, obra de Felicidade
Patrocínio que fascinou a plateia suscitando comentários particularizados, tais
como: sinergismo, bipartição; inteireza do ser, amor, entrelaçados; duas
cabeças, um só corpo, duas maneiras de pensar; saudade, abraço; é dinâmico,
está pulsando; extraordinário; depende da perspectiva, de cada lado se vê uma
coisa, e também depende do instante vivido; está de acordo com o momento do
artista; a obra depois de pronta é do público. Como a imagem tem a cabeça
bipartida, como um coração, Petrônio Braz disse que “um lado representa a
razão, e o outro a reflexão”. Wanderlino Arruda afirmou que “o que caracteriza
homem e mulher é o sentimento e não a forma física, embora ache bonitas as
partes femininas desta obra”. É um abraço que busca a harmonia, vence os
antagonismos, sendo uma eterna procura; uma busca da unificação; os
representados se amam; os braços não estão cruzados e sim se complementam.
Ivana justifica a escolha: “Esta obra faria estremecer o Admirável Mundo Novo”.
Felicidade Patrocínio argumentou que “pedra não é pedra, ela pulsa, transmite
emoção, sentido e significado, tem mobilidade e função. Não vejo dois e sim um
que complementa o outro, sendo unidade formada de multiplicidade”. E finalizou:
“É um abraço no qual um é feito de dois”.
*Médica
endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de
Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora
do livro “Segurando a Hiperatividade”
Li há muito tempo esse livro, escrito há muito mais tempo ainda. Impressiona a atualidade do argumento, e do quanto a ficção vem se aproximando da realidade. Boa palestra, bom tema, bom texto, Mara. Parabéns.
ResponderExcluirAinda atual. Veja a desintegração da família, o sexo livre e o uso de drogas lícitas e ilícitas para atordoar a tristeza. O livro foi escrito há 84 anos. Também li a obra, mas não emiti a minha opinião sobre ela. Limitei-me a contar como foi a palestra. Obrigada pelo comentário, Marcelo.
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