quarta-feira, 9 de abril de 2014

“Admirável Mundo Novo” pode não ser novo, mas continua admirável

* Por Mara Narciso

A ficção científica “Admirável Mundo Novo” foi escrita pelo inglês Aldous Huxley, num mundo assim: a economia viveu o crash da bolsa de Nova Iorque, a indústria produzia com rapidez nas linhas de montagem, o padrão de beleza era Marlene Dietrich, havia um nacionalismo excessivo, regimes totalitários e ameaça à paz. Era 1932, e o livro vendeu um milhão e meio de exemplares, chegando ao Brasil em 1972. Fez sucesso por aqui, pois estávamos numa ditadura, com controle de mentes e pensamentos, e as pessoas sonhavam com a liberdade. Contextualizado o livro, falando no Clube de Leitura Felicidade Patrocínio, a Doutora em Literatura Ivana Ferrante Rebello começou pelo enredo.

Segundo a palestrante, o autor criou um lugar em que dez países desenvolvidos viviam em paz. A sociedade com alto padrão de civilização era composta de castas, sendo Alfa, Beta, Gama, Delta e Ípsilon, e dentro de cada uma delas as pessoas eram parecidas, tinham funções específicas, e se vestiam de uma mesma cor. Os “Alfas” mantinham a ordem criando leis e comandando. Contemplar a natureza era condenado por ser de graça, arte e livros eram tidos como ameaças, pois fariam pensar, o que estremeceria o equilíbrio social. Era obrigatório ser feliz. Os sentimentos negativos como medo e dor eram expurgados pelo condicionamento e pelo Soma, droga fornecida pelo governo para todos, desde criança, mais a música repousante.

Continuando, Ivana Ferrante disse que os conceitos pai e mãe eram obscenos. Por serem figuras perigosas, a família não existia. As pessoas eram produzidas em série no Centro de Incubação através da inseminação artificial. Um só ovo poderia ser repartido em até 96 pessoas iguais. As mulheres eram semelhantes entre si, plastificadas, belas, asseadas, perfeitas, consideradas “pneumáticas”. Lenina Crowne era uma delas. Eram induzidas a ter vários relacionamentos. A vida durava 60 anos e era proibido envelhecer. Com esta idade, morriam alegremente, sendo então cremadas, e viravam adubos.

Bernard Marx era um exemplar Alfa. Recebeu álcool por engano no Centro de Incubação e ficou mais baixo que os outros, sendo complexado, e ao mesmo tempo crítico e questionador. Reclamava da música alta, queria observar o mar e conversar. Lenina não o entendia, mas ela o interessava. Disse a palestrante que mesmo com todo o controle, algo escapa e o ser humano não se deixa ser totalmente manipulado. A ânsia, a sede e a sensação eterna de incompletude são a centelha humana.

Bernard e Lenina vão passear em Malpaís, um lugar selvagem. Lá, décadas antes, Linda e Tomakin, o Diretor de Incubação e Condicionamento, tiveram um caso amoroso e ela engravidou, “inconveniência mais escatológica, que pornográfica”, diz o livro. Esta situação abominável e impura deixa as pessoas ruborizadas. Seres únicos e individualidade não existiam. “Linda ficou para trás, morando com os selvagens, sendo por eles marginalizada”, explica Ivana Ferrante. O choque de civilizações a excluiu assim como ao seu filho John, que nasceu lá. O menino não pertencia a nenhum dos mundos. Ouvia a mãe contar do Admirável Mundo Novo e do seu trabalho no Centro de Incubação, mas pouco dele entendia. Aprendeu a ler, e encontrando a obra de Shakespeare, poesia de alta densidade, leu tudo, o que lhe provocava fortes emoções. Linda recebia vários homens em sua cama, conforme lhe era exigido no mundo civilizado, porém as mulheres da tribo tinham ciúmes e a condenavam, e seu filho era apedrejado. Bernard e Lenina conhecem a história e levam os dois para a civilização, onde as pessoas os colocam numa redoma como objeto de curiosidade e visitação. Houve nova discriminação, pois a sociedade teme o diferente. No início John gosta, mas nota que os seres são robotizados, e ainda assim se apaixona por Lenina. Para se expressar, declama Shakespeare, que lhe serve para explicar a humanidade. Todos riam quando ele se referia aos sentimentos. “John é o personagem mais rico”, diz Ivana, “e vai se tornando a cada dia mais isolado”.

A palestrante disse que o encontro público de John com o Diretor é uma cena dolorosa que faz seu pai cair em desgraça. Linda, decaída, gorda, envelhecida e com os dentes estragados é deixada de lado pelos civilizados, passando a consumir grandes quantidades de Soma. Como a dor e a tristeza são proibidas, só lhe resta se embriagar. Morre de overdose e John fica deslocado numa sociedade inodora e insípida. Tem destino triste, pois fervendo por dentro, grita que quer poesia, dor, tristeza, sofrimento, insegurança e medo. Então, reivindica ao Diretor o direito de trabalhar num farol guia. John se mata, e seu cadáver é encontrado dependurado, como um pêndulo, indicando as direções. O livro não dá respostas e as perguntas ficam em nós. As pessoas tinham amor a sua escravidão, e como muito lhes foi dado, ficaram reduzidos a passividade e ao egoísmo. “Oh Admirável Mundo Novo, quem poderá explicar seres tão perfeitos?”, destaca a palestrante.

Numa segunda parte Ivana Ferrante Rebello mostra um vídeo, e abre a discussão, expondo o motivo de a arte ter sido expurgada daquele mundo uniforme. Por ser única foi banida, assim como a poesia. O poeta tem visão aguçada, sensível, acurada, nota o que ninguém vê. “Somos pessoas únicas em nossas particularidades”, diz ela. Maria Luiza Silveira Teles, por sua vez, falou que a Fluoxetina seria o Soma de hoje. E continuou: “As escolas atuais uniformizam, exigem silêncio, arte e música estão do lado de fora, há cuidado com os títulos dos livros, e os pais vigiam, querendo Literatura fácil e atual”.

Para Ivana o mundo contemporâneo tem dificuldade em se indignar. “A ditadura, religião, sociedade, nacionalismo, obrigatoriedade da Língua Portuguesa são fatores de manipulação das consciências”, manifestou ela. As pessoas são apáticas, e diante de uma obra de arte não gastam mais do que três segundos. Há um pragmatismo, tempo é moeda e contemplar é ação não valorizada. “Para quê tanto livro de poesia?” Indaga e responde a palestrante: “não servem para nada”. E ainda, “quem não lê não se abre para a arte, e sem ela se esquece da própria humanidade. Arte e Literatura nos acordam”.

Foi colocada diante do público uma bela e instigante escultura de figura humana, obra de Felicidade Patrocínio que fascinou a plateia suscitando comentários particularizados, tais como: sinergismo, bipartição; inteireza do ser, amor, entrelaçados; duas cabeças, um só corpo, duas maneiras de pensar; saudade, abraço; é dinâmico, está pulsando; extraordinário; depende da perspectiva, de cada lado se vê uma coisa, e também depende do instante vivido; está de acordo com o momento do artista; a obra depois de pronta é do público. Como a imagem tem a cabeça bipartida, como um coração, Petrônio Braz disse que “um lado representa a razão, e o outro a reflexão”. Wanderlino Arruda afirmou que “o que caracteriza homem e mulher é o sentimento e não a forma física, embora ache bonitas as partes femininas desta obra”. É um abraço que busca a harmonia, vence os antagonismos, sendo uma eterna procura; uma busca da unificação; os representados se amam; os braços não estão cruzados e sim se complementam. Ivana justifica a escolha: “Esta obra faria estremecer o Admirável Mundo Novo”. Felicidade Patrocínio argumentou que “pedra não é pedra, ela pulsa, transmite emoção, sentido e significado, tem mobilidade e função. Não vejo dois e sim um que complementa o outro, sendo unidade formada de multiplicidade”. E finalizou: “É um abraço no qual um é feito de dois”.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   

2 comentários:

  1. Li há muito tempo esse livro, escrito há muito mais tempo ainda. Impressiona a atualidade do argumento, e do quanto a ficção vem se aproximando da realidade. Boa palestra, bom tema, bom texto, Mara. Parabéns.

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  2. Ainda atual. Veja a desintegração da família, o sexo livre e o uso de drogas lícitas e ilícitas para atordoar a tristeza. O livro foi escrito há 84 anos. Também li a obra, mas não emiti a minha opinião sobre ela. Limitei-me a contar como foi a palestra. Obrigada pelo comentário, Marcelo.

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