quarta-feira, 9 de abril de 2014

A justiça do professor Cambeba

* Por Marco Albertim

Há um débil limite entre o imaginário e o palpável, em quem opta pelo materialismo, durante um bom tempo antes que a nova escolha não se assenta em conjeturas científicas. O imaginário, inda que carregue o risco de retrocesso a crenças difusas, é tentador porque induz à prostração do raciocínio.

A crença na convulsão permanente da matéria requer tempo, tempo e observação. O professor Adauto Cambeba, há algum tempo dera as costas às homilias do padre Hercílio, mesmo mantendo uma polêmica amistosa entre o viço de seu credo ainda vaidoso, e a metafísica do religioso. A recusa, no entanto, ao reconhecimento do regime militar como legítimo, juntava-os como a irmãos.

- Aos militares, a cremação dos infernos!

- Vai com Deus – respondera padre Hercílio da última vez em que se atiçaram.

Dali a uma semana, meio que ungido pelo bom agouro do padre, Adauto Cambeba juntou-se a meia dúzia de amigos, pondo-se a conversar na praça deserta àquela altura da noite, ou começo da madrugada. Convém precisar que a praça alongava-se em forma de triângulo, espremida por casarões de um lado e de outro, habitados aqui e ali por oligarcas de engenhos de açúcar. O grupo acomodara-se em dois bancos, um de frente para o outro, sem recosto para as costas. Na extremidade aguda do triângulo.

Certo de que padre Hercílio daria razão a sua prédica, o professor não subiu no banco a modo de um meetingueiro republicano, mas levantou-se, ficou em pé na alameda de terra crua da praça.

- Os militares serão julgados por seus crimes. E o mel que escorre da cana-de-açúcar de Goiana, não será mais tingido pelo sangue dos trabalhadores...

No quarteirão da rua do Amparo, um único feitor de engenho deixou-se acordar pelo zumbido das predições de ameaça do professor Adauto Cambeba. Múcio Rabelo ergueu-se da cama de caviúna, cuja entalhadura barroca afiançava o legado colonial de que se beneficiara. A esposa, tão madura quanto ele e, ainda com relevos sem indícios de perda do frescor, seguiu no sono sem pecados das sinhazinhas atentas às homilias de padre Hercílio.

Múcio Rabelo reconhecera o diapasão anasalado do odiado professor Cambeba. Telefonou para a Cadeia Pública, queixando-se de agitação imprópria no nicho secular da Praça da Bandeira; telefonou, atendeu-o o sargento plantonista, àquela altura também agastado por ter sido interrompido em seu sono de soldado no justo descanso.

A viatura policial, uma pickup, estacionou ao lado da praça. O feitor se pusera na janela de casa, com os cotovelos debruçados, mostrando as listras do pijama azul e branco.

- É aquele de focinho mole. Esse mesmo, o Cambeba – gritou ele para o professor.

Adauto Cambeba foi posto na carroceria coberta da pickup, junto a dois policiais fardados com a mesma cor do veículo. Aos outros, ouvintes atentos do professor, o sargento ordenou-lhes a dispersão.

O professor Adauto Cambeba foi solto na tarde do dia seguinte, a rogo do padre Hercílio. Uma semana depois, o feitor Múcio Rabelo morreu na cama de caviúna, apoplético, contrariado com as ameaças em surdina de Cambeba. Padre Hercílio rezou a missa de sétimo dia, a contragosto do professor. Cambeba jurou, e disse aos amigos que o viram ser empurrado para a pickup, pichar em tinta preta na lápide do feitor – Aqui jaz um fascista.

Cambeba seguiu pela rua das Quintas sem que ninguém o enxergasse na madrugada fumaçada de agosto. Abriu um dos lados do portão do cemitério; o ferro, ainda que velho, não rangeu. Fora ao enterro do desafeto, espreitara com pesar o choro da viúva, noutros tempos sua namorada. O vento soprou frio entre as palmeiras e acácias, nas alamedas salpicadas de pedrinhas. É atrás da capela – pensou. A lua quis se insinuar, só espalhou um arremedo de claridade, tão bacento que se confundiu com o rosto terroso de Cambeba. Súbito, o vento soltou um assovio grosso entre as acácias cujos galhos se chocando, arranham-se. Cambeba voltou-se, mesmo depois de distinguir na lápide do feitor, espectros de outros feitores, já comidos pelos vermes. Múcio Rabelo ainda tem carne nos ossos – ajuizou. A acusação na lápide, não será tão tardia. A luz da lua, insistindo contra a bruma fumacenta, deixou entrever o que mais zumbia nos ouvidos de Cambeba, o sussurro ruidoso dos galhos das acácias, os mais grossos. Ele olhou na mesma direção da suposta conversa. Não viu ninguém. Mas entre o ir e vir da luz indecisa da lua, pensou distinguir um rosto com um bigode peludo nas cascas dos galhos das acácias. Quanto mais a luz incidia nos troncos, mais desprendia-se um som difuso, inda que audível, de uma voz suplicando para a lápide não ser conspurcada – Nãaao. Não pode ser, eu sou um materialista – rematou Cambeba. Tirou do bolso de trás da calça o spray de tinta. Em vez da sentença na lápide, jorrou a tinta entre um tronco e outro da acácia, onde supunha ter visto o rosto indeciso do feitor.

*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.


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