Foto: Natália Cancian -
Folhapress
Canasvieiras quer expulsar mendigos
* Por
Elaine Tavares
Buscando as raízes da palavra mendigo, diz-se que vem do indo-europeu
‘men-’ (pensar) e ‘dhe-’ (por, colocar), mais o verbo latino ‘facio’
(fazer), no qual o prefixo ‘de-’ significa carecer (de-fecto). Vem daí
também a origem do significado real que foi dado a palavra. Nos tempos muito
antigos, mendigo era aquele que carecia de algumas funções mentais, o louco, ou
ainda os que tinham alguma deficiência física. Sem que ninguém quisesse arcar
com eles, viviam como caminhantes, esperando pela compaixão das gentes.
Nas sociedades antigas, como na Grécia, por exemplo, havia aqueles que
decidiam por vontade própria, viver na rua, daquilo que encontrassem. Era os cínicos.
E já naquele tempo eram bastante criticados por isso. Outros, como Francisco de
Assis, chegaram a fundar ordens religiosas, compostas por medicantes. Viver de
esmolas para dedicar mais tempo as coisas espirituais. Também, no seu tempo,
eram rechaçados, chamados de loucos, apartados da vida social. Só mais tarde
Francisco virou santo mas, quando vivo era um pária. Seria expulso da praia de
Florianópolis se aqui vivesse.
Hoje, os mendigos já não são só aqueles que tem deficiência , ou
cínicos, ou religiosos. São os que não conseguem permanecer dentro da bolha de
“consumo” capitalista. Assim, os empobrecidos, os que não tem trabalho, os
abandonados, os que caíram em algum vício, os desgraçados, os excluídos, os que
não conseguem ganhar o pão do dia, são os que vivem nas ruas, esperando a
compaixão das gentes.
Mas, no mundo coloridos do capitalismo selvagem não há espaço para
compaixão. Aquele que não é igual só consegue fomentar o medo. Assim, os que,
por algum motivo, conseguem se manter na bolha da vida “normal”, que é ter um
emprego, um pequeno negócio, uma casa para morar, passam a olhar com
desconfiança os que não tem. Sentem medo, nunca compaixão. E, para purgar o sentimento
de medo, atacam. Preferem tirar do alcance das vistas aqueles que, de alguma
forma, são a denúncia viva de uma sociedade falida.
Os gregos, que são a base da cultura ocidental já diziam: o ser é, o
não-ser não é. Ou seja. Só existe aquele que é igual. O diferente, não-é, logo,
deve ser exterminado. Foi essa lógica que sustentou a matança dos indígenas no
chamado “novo mundo”, que permitiu a escravidão dos negros, e que vem
sustentando o extermínio de todos aqueles que não estão enquadrados nos cânones
da “normalidade” social. Não é sem razão que um morador de rua tenha sido
condenado a cinco anos de prisão por estar portando pinho sol e água sanitária
num dia de protesto no Rio de Janeiro, ou que o pedreiro Amarildo tenha sido
barbaramente assassinado numa favela carioca. Outros tantos exemplos poderíamos
colar aqui: o desordeiro, o black bloc, o grevista, o pichador, o crítico. É
diferente? Crucifiquem-no!
Por isso não é de surpreender a passeata feita no bairro de
Canasvieiras, em Florianópolis, pedindo a expulsão dos mendigos e dos
viandantes da praia. Comunidade praieira, turística, já há muitos anos virou o
destino preferido da classe média alta argentina e brasileira. Ali abundam os
hotéis, as propriedades protegidas e os negócios medianos. Ou seja, reduto da
pequena burguesia, sempre tão cruel, tentando escalar a montanha da riqueza,
custe o que custar. A essa gente, tão afeita em subir no contexto social, em
acumular riquezas, as criaturas mal-vestidas, sem trabalho e, muita vezes
drogadas ou alcoolizadas, são muito mais do que uma ameaça. Elas acabam sendo
uma espécie de espelho às avessas. O horror do qual todos querem escapar. Por
isso reagem tão mal. Alguns desses seres podem sim ser bandidos, ou ladrões, ou
monstros, mas a maioria é formada por gente que, por algum motivo, não consegue
penetrar na roda do mundo normótico. Ou seja, criaturas iguais a nós, só que
desprovidas dos meios para ganhar a vida. Daí que deambulam pela cidade,
esperando a compaixão daqueles que são seus iguais, humanos. Mas, por detrás
das janelas, os olhos assustados que observam os viandantes não conseguem os
ver como iguais, ao contrário, são os não-seres. Então, o grito: expulsem,
crucifiquem!
Enrique Dussel, criador da filosofia da libertação fez um exercício bem
simples usando a velha máxima grega “o ser é, o não-ser não-é” que nos
governa. Para que a gente se liberte desse axioma racista e discriminatório há
que caminhar a partir de outro. E ele o inventou. Disse: “o ser é, o não-ser é
real”. E isso muda tudo. Se aquele que não é igual a mim é real,
significa que eu não posso simplesmente dizer: matem-no, crucifiquem-no! Tenho
de enfrentar essa diferença, olhar nos olhos, compreender. A partir daí outras
práticas humanas podem ser possíveis.
Esse é um trabalho gigante que temos de cumprir. Mudar os axiomas,
transformar a filosofia, destruir todo o edifício cultural que perdura por mais
de dois mil anos. Não é coisa fácil. Mas, o fato de não ser fácil não significa
que não possa acontecer. Nesse sentido, talvez o grande trabalho que
precisa se cumprir é o de alfabetizar a pequena burguesia de Canasvieiras sobre
isso. Mostrar que os mendigos não são necessariamente um perigo. São pessoas
que precisam ser compreendidas no seu contexto. Muito mais perigoso por ser o
traficante bem vestido, o playboy estuprador ou o milionário assassino que se
hospeda nos hotéis de luxo da praia e tem muito dinheiro no bolso. Mas, que, às
vezes, por parecer igual, passa batido.
A sanha raivosa contra o pobre não é coisa de hoje. Parece ser “normal”
bater no que está no chão. É mais fácil “malhar o judas” do que enfrentar a
dura verdade que o velho Marx já apontava: no capitalismo, para que um viva
outro tem de morrer. Os poucos “manifestantes” que saíram pelas ruas de
de Canasvieiras querem seguir pela via mais curta. Destruir o que lhes dá
medo. Precisam saber que não adianta. O sistema ao qual seguem e no qual querem
ascender sempre vai produzir mais e mais excluídos. Logo, esse, serão um
exército. Quem sabe, aí, tudo mude! …
Jornalista
de Florianópolis/SC
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