A minha primeira brazuca
* Por
Urariano Mota
As notícias falam que a
imagem da Brazuca, a bola da Copa do Mundo de 2014, foi apresentada ontem no
Parque Laje, no Rio de Janeiro. A linda bola foi vista em uma projeção de luz
3D, depois de aprovada e testada por 600 jogadores profissionais de 10 países
diferentes. Isso me lembra uma outra bola, a brazuca primeira, da qual eu fui o
dono.
Até onde lembra a
memória, por mais seletiva de momentos honrosos que ela, trapaceira, ergue à
consciência, um momento é inesquecível das minhas ações no futebol. Por mais
seletivas jogadas das quais a memória fez um grande time, um dream team, esta
que lhes vou contar é digna de um craque. Em resumo, já lhes digo, eu tinha
oito anos.
Nessa idade em que
nascem os craques, em que já desponta neles o talento, eu, como todos os
craques, adorava futebol. Adorar, no caso, quer dizer não pensar nem sonhar com
outra coisa: é jogar, jogar, de olhos fechados, abertos, dentro de campo, fora
de campo, com bola, sem bola, de todas as maneiras.
Em 1958, quando o
Brasil foi campeão na Suécia, ganhei de presente uma bola de borracha. Na minha
vizinhança, todos os meninos jogávamos então com bola de meia. Por isso
orgulhoso me dirigi para a rua. Nesse dia eu era a própria seleção, mais que
Didi, Pelé, Vavá, aqueles que bailaram lá na Europa, porque eu era esse grau
supremo, acredito que em todas as nações do planeta, a maior autoridade e
espetáculo, o dono da bola.
Os meninos me cercaram,
lembro bem. E eu, em lugar de abarcar sozinho o troféu, orgulhoso, dizia-lhes,
olhem, e eles, com sede, mais que olhavam, executavam malabarismos com a minha
bola, para me assegurar, aduladores, que bola como aquela no mundo inteiro não
havia. Eu acreditava, diria mesmo, todos acreditávamos, até mesmo os pérfidos
aduladores. Bola e dono da bola, como nós, no mundo inteiro não havia. Disso
vocês também terão a certeza. O fato é que, terminada a corte, para melhor
encantamento, decidimos jogar. Sim, para que desejávamos uma bola? Para
exibi-la e recolhê-la depois? Definitivamente não.
Pois bem, resolvemos
jogar. Era um costume então entre os meninos, não sei se perdura até hoje, o
que chamávamos de “tirar o time”. Ou seja, os líderes naturais dos meninos, que
podiam ser os melhores jogadores, ou os mais ricos, os menos miseráveis, os
mais fortes, ou os mais valentes, escolhiam aqueles que iriam jogar em seu
time. Assim estabelecidos, os líderes escolhiam, com um risco no chão, na terra
do campo, os dois times, com a frase, com o mantra:
- Este é meu.
- Este é teu....
Quando ocorria de um
bom jogador ser disputado por ambos os líderes, oferecia-se um menino ruim,
como um jogador a mais ao time que ficava sem um Pelé. Compensavam.
- Nêgo.
- Nêgo é meu!
- Você pode ficar com
Dirico a mais.
- Essa ruindade eu não
quero.
- Dirico é ruim, é? Ele
sabe marcar, ele não deixa ninguém jogar.
- Então fica com ele!
- Tu só pensa em
ganhar.... Pode vir, Dirico.
Os excluídos, assim
incluídos, faziam ponto de honra em transformar a sua desonrosa escalação em
vitória do time que o abrigava. De preferência derrubando, de todas as formas e
maneiras, o Nêgo. Mas como eu não me chamava Dirico, porque eu era o titular
absoluto da seleção nesse dia, deixei-me acompanhar sonolento, entediado, a
escalação dos dois grandes times:
- Este é meu...
- Este é teu...
- Pronto. Vamos jogar.
Então eu, o sonolento,
ainda meio tonto, acordei.
- E eu? Em que time eu
jogo?
Então o mais sábio, o
mais inteligente e sabido líder, com ar de negociador norte-americano em terras
de petróleo, me disse, com voz terna, aveludada e conciliadora:
- Depois. Isso de agora
é só um treino. No jogo mesmo tu entra.
Então jogaram. E eu,
que não era Dirico, porque de maneira nenhuma poderia ser oferecido como uma
compensação, naquele augusta hora, durante bons 60 minutos, assisti ao treino
do jogo que viria. E como tudo tem um fim, para desgraça ou graça o treino
acabou. E desta vez foi a minha vez de me acercar dos líderes:
- Agora vamos jogar.
- Olha, já é meio-dia.
Amanhã tem mais. Vamos, turma?
E me devolveram o
troféu, o meu presente, a minha bola. Honestos, na devolução. Ficamos então a
mirar, sem acreditar no que víamos, sentados no chão para não cair, eu e a
minha bola. Por isso digo e escrevo, sem muito orgulho, que a César o que é de
César, e a Tostão o que é de Tostão. Porque nesse particular jogo sem bola, em
1958 eu sou e fui o pioneiro, por me antecipar ao craque no México em 1970.
Ninguém, nenhum dono da bola jamais jogou sem bola como este que lhes fala.
Foi a minha primeira e
inacreditável. A primeira brazuca a gente nunca esquece.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
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Ai que frustração! Quem aguenta ser um rei sem reino? É o mesmo que mastigar e na hora de engolir, cuspir. Eu também sei o que é isso.
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