* Por Fernando Barreto
"Estou atrasado, mas serei deputado" - Miro
" Essa massa anônima está sendo induzida ao erro contínuo. Somos um rebanho sem instinto de autopreservação!" - O verdadeiro Elvis
Capítulo 1- Once upon a time
- Miro, que diabos aquele velho fica gritando logo cedo ali na esquina da Rua Direita com a 15 de Novembro enquanto entrega panfletos? Não há nenhum dia em que eu passe lá pela manhã e não o veja e ouça! Não há meios de eu entender o que ele diz e isso me perturba! Nunca parei pra pegar o panfleto porque sou cismado de que aquilo é alguma piada com os transeuntes –- Elvis disse ao entrar no apartamento de Miro.
Elvis tinha a chave do apartamento, e como de costume, trazia duas caixas de leite longa vida e três jornais diferentes daquele dia, roubados da porta de outros moradores do prédio. Miro respondeu a Elvis:
- Ele supostamente trabalha para uma ótica, e o que ele grita é “O-TI-CÁ!!! O-TI-CÁ!!!”. Eu também demorei um tempo pra entender o que ele gritava, até que um dia passei mais perto e peguei um panfleto. Também achava que poderia ser piada, ou que haveria algo escrito em greco-etrusco naquele papel, mas era apenas propaganda de ótica mesmo. Já vi coisas engraçadas e estranhas acontecerem enquanto eu andava nas ruas aqui no Centro, como na ocasião em que eu ganhei um belo canivete suíço pra responder a uma pesquisa de perfumes. Sim, ganhei uma arma branca em troca da minha opinião sobre o cheiro que um paquito vai gostar mais de sentir em si mesmo quando estiver saindo cedo de casa pra trabalhar, ou pra fazer a vida valer um pouco mais a pena numa sexta-feira. Isso rolou ali na Rua São Bento. Nessa ocasião uma garota me chamou discretamente quando eu passei por uma porta sem nenhuma placa, num prédio que parecia a princípio ser residencial. Minha dúvida com relação à eficiência desse tipo de apelo, tendo a publicidade como fim, às vezes me faz pensar que isso é de fato uma piada, ou uma conspiração, uma coisa do governo, para prejudicar a saúde mental do povo e torná-lo mais passivo, acentuando sua condição de rebanho manso. O proletariado passa ali todos os dias, já desgastado pelo transporte precário, e então finalmente consegue chegar ao centro. Ali essas pessoas ouvem e vêem aquele sujeito, que é supostamente um semelhante da espécie humana. Acham estranho e aos poucos vão desenvolvendo um terrível medo da loucura, ainda que não se sintam realmente preocupados enquanto passam ali apressados para chegarem ao trabalho. Não dá tempo de sentir isso naquela hora. Temos hoje em dia a tendência de achar que tudo que é estranho é conspiratório, mas convenhamos... O velho fica bem perto daquele grande relógio digital que informa horário e temperatura. Nessas manhãs nevoentas de meio de semana as pessoas passam por ali e sempre se vêem esmagadas pelo relógio, pelo tempo que elas não têm para chegar ao trabalho. Vêem, portanto, sua própria pressa naquele relógio e ao lado vêem aquele homem, que parece representar um futuro nada improvável para esses transeuntes. Um velho homem destruído pela vida. Mas isso é um acontecimento cotidiano, todas as manhãs são sempre iguais e essas pessoas vão acumulando o medo, ainda que inconsciente, de terminarem daquela forma, destruídas pela vida, sem qualquer tipo de perspectiva e enlouquecidos, numa idade em que poderiam estar aposentados, mas ainda saudáveis e sentindo o prazer do ócio contemplativo para o resto da vida. Penso que o velhinho rouco pode ser um ator, e seu patrão pode não ser o dono da ótica. É alguém sabotando ainda mais a sociedade, e aproveitando para rir dela. É importante para quem está no comando dar um nó na cabeça do povo. E desse povo ribeirinho eu não tenho dó. É um grande rebanho humano. A única coisa que aprendem a fazer sozinhos e ainda jovens é a transar e se reproduzirem. Merecem enlouquecer mais e mais. Merecem ter suas almas corroídas e finalmente eliminadas por completo, assim como o nervo de um dente seriamente cariado é eliminado pelo dentista. Gosto de ver isso tudo ruir gradativamente, mas queria estar sempre inacessível à maioria das pessoas. Se eu descer pela escada para chegar à rua serei importunado. Se eu for pelo elevador é ainda pior. São coisas da vida, mas já estou cansado. Minha condição de ser humano me constrange. Preciso escrever um livro rentável, e viver dos direitos autorais dele num sítio no interior, onde poderei viver com o isolamento necessário para que eu sinta o verdadeiro sabor da vida, além de poder ter tranqüilidade e inspiração para escrever mais e mais e aumentar minha coleção de discos. Viria pra São Paulo só pra comprar discos. Faria uma parede de amplificadores, todos valvulados. Depois que se toca usando amplificadores valvulados, o resto é lixo. Compraria uma guitarra decente, gringa, provavelmente uma Gibson SG.
- Você pertence a uma outra linhagem humana. Eu creio piamente que você é um agente infiltrado nisso aqui e perdeu contato com a matriz. Pode ser também uma espécie de espião satélite, e que por interesses da matriz, transita aqui sem saber que não pertence a essa merda toda, mas ainda assim capta informações para eles. Você está no meio de uma monstruosa metrópole do terceiro mundo, onde diferentes etnias e sotaques se encontram, e a nata da brasilidade brota em todas as esquinas e é exalada por quase todos os transeuntes – disse Elvis.
-Tentar escapar disso morando em São Paulo é loucura, você vai entrar em parafuso se tentar. Pense que há um supermercado 24 horas aqui na nossa rua, proporcionando alguma qualidade de vida, e que a cidade pode ser boa com você de vez em quando. É preciso tentar abstrair-se dos problemas da alta densidade demográfica. Eu espero ansiosamente pelo dia em que todas as pessoas percam suas senhas... Todas as senhas necessárias para que suas vidas funcionem e essa porra toda entre em colapso – disse Miro.
- Antes de ver aquele velho da ótica gritando na rua, eu atravesso aquela ponte próxima ao Fórum João Mendes e a Praça da Sé... – disse Elvis.
- É o Viaduto Dona Paulina... – disse Miro.
- Sim... E dezenas de pombas ficam me atormentando, voando baixo de um lado para o outro, numa distância de poucos centímetros da minha cabeça, infestadas de doenças, muitas delas talvez ainda desconhecidas, porque aqueles hippies desgraçados dão comida a elas. Desgraçados... Pedem cigarros também, todos os dias. Sé há alguma situação em que tenho vontade de morrer é quando um hippie pensa que eu também sou hippie e me aborda, principalmente se for pra pedir cigarro. Tenho vontade de matar o hippie e de morrer por ter feito algo que o fizesse pensar que sou como ele – disse Elvis.
O verdadeiro Elvis não é Elvis Presley e nem Elvis Costello. O verdadeiro Elvis flanava pelo centro e ao chegar pela manhã ao prédio de Miro, subia de elevador até o último andar, o décimo nono, para depois descer de escada até o oitavo, e entrar no apartamento 808. Fazia isso pela manhã, e no caminho roubava as tais caixas de leite longa-vida e jornais da porta dos vizinhos para beber e ler com Miro. A despeito de ter características européias, como ser ruivo, bastante branco e com olhos azuis, era possível ver naquele sujeito um brasileiro típico, principalmente por causa da ginga ao andar e das gírias. Tinha aproximadamente um metro e oitenta de altura e pesava algo em torno de 70 quilos. Relativamente alto e magro, apesar de ter a cara redonda, o que fazia com que seus amigos dissessem que sua face parecia uma moeda de um real. Tinha cabelos alaranjados, grossos e enrolados.
Trapaceiro e vigarista sempre que achasse necessário, a cada ação que praticava levava à risca sua convicção de que os fins justificam os meios.
Corria então o mês de Fevereiro de 2008, e naquele período o prédio de seu amigo Miro ainda não possuía tantas câmeras por todos os lados. Apenas o interior dos elevadores e a garagem eram filmados. ‘Temos sorte em não termos câmeras em todos os corredores e becos do prédio. Há prédios em que elas são muitas e registram implacavelmente todas as ações íntimas ou corruptas. Chega a ser incrível a maneira como Orwell adiantou em mais de 50 anos o conceito de TELE-TELA. Todo mundo hoje é vigiado pelas pessoas mais esdrúxulas, que ficam vendo o que as câmeras filmam. É bizarro’- costumava dizer.
Em troca do jornal e do leite, Miro um dia o ensinaria a escrever textos literários de maneira convincente, dentro da norma culta, mas com linguagem acessível. Era um acordo unilateral, já que Miro, que sempre pensou que um escritor já nasce feito, nunca prometeu que ensinaria o amigo a escrever os tais textos, mas Elvis supunha que o amigo o faria por agradecimento. Elvis trabalhava ajudando famílias em mudança que chegavam ao Centro da cidade, mais especificamente no quadrilátero entre as Avenidas São João, Ipiranga, Rio Branco e Duque de Caxias, área de grande rotatividade de moradores. Era onde Miro vivia. Também comprava e revendia livros e discos de vinil nas redondezas. Miro, um ávido colecionador, era um de seus clientes e também o acompanhava em andanças pelo centro atrás de preciosidades culturais.
Pelo que chamava de ‘razões filosóficas’, Elvis detestava mulheres grávidas e podia ver em seu cotidiano a densidade demográfica da região central da cidade crescer quase diariamente, tamanho era o número de jovens grávidas que via todos os dias sem nem ao menos ter que sair do prédio.
Para o verdadeiro Elvis, Roy Orbison era muito melhor que Elvis Presley. Miro evitava falar sobre isso, porque no Olimpo do Rock não deveria haver essa rigidez hierárquica. Há muito tempo considerava inútil discutir se o melhor baterista era Keith Moon ou John Bonham, ou se Alvin Lee era melhor guitarrista que Pete Townshend. Os que estavam classificados para a condição de imortais não precisavam disputar mais nada entre si. Isso valia para todas as áreas da arte.
A base da alimentação do verdadeiro Elvis era o leite roubado pela manhã e o número de tabletes de caldo knorr que estivessem disponíveis ao longo do dia. Gostava também de comer puro o conteúdo daqueles pacotinhos de tempero de miojo. Miro lhe alertava sobre os graves problemas de saúde que aquilo inevitavelmente lhe causaria, mas o verdadeiro Elvis não respeitava o status quo. Costumava dizer que “ se é gostoso, faz bem ”.
Miro via em Elvis um complemento de sua personalidade. Conhecer aquele sujeito e tê-lo por perto era como uma vingança pela culpa que sentia por ser bonzinho e compreensivo demais, até mesmo com quem sentia desprezo. Elvis o achava parecido fisicamente com Phil Anselmo, na época em que esse era jovem e cabeludo. Miro tinha mais ou menos um metro e setenta e cinco de altura e cerca de 75 quilos, cabelos castanhos compridos e lisos até um pouco abaixo do ombro.
Miro e Elvis conheceram-se no estádio da Rua Javari, pois ambos eram torcedores do Juventus, da Mooca. Foi num jogo do time contra o Ituano, numa tarde de sexta-feira, pelo Campeonato Paulista de 2003. O Juventus venceu por dois a um. Ambos iam a todos os jogos com a camiseta do time, mas nessa ocasião em que se conheceram, Miro usava uma do Talking Heads, pois a do Juventus tinha sido colocada para lavar. Elvis o viu no intervalo do jogo e pensou: “Diabos, um juventino que gosta do Talking Heads só pode ser gente boa!”. Pediu-lhe um cigarro e falaram de Rock.
Leia o segundo capítulo deste conto na edição de amanhã.
• Escritor
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