sábado, 10 de março de 2012







A Bruxa e o encantamento

* Por Risomar Fasanaro


São dois. Duas vidas, dois destinos. Um não vive sem o outro, para inveja dos que não têm ninguém, e desespero dos que têm, mas vivem mal.

Há uma lenda oriental que conta a história de um pássaro que reunia em si o macho e a fêmea, mas durante uma tempestade ele partiu-se em dois e, desde então, as metades perdidas por mais que se busquem, jamais se reencontraram. Vem daí, dizem os que crêem na lenda, essa nostalgia do outro, esse ser incompleto que somos ao longo da vida. Seria essa a razão dessa busca incessante, dessa procura ao longo da existência.

Mas eu conheço uma metade perdida que encontrou a outra. E aqui divido com vocês a história de dois seres que moram nas ruas. Dois lúmpens que vivem a se cheirar e beijar na boca de forma desavergonhada, carregada de paixão como só vemos nas canções de Chico, o Buarque. Para eles, os carinhos são sempre como se fossem a primeira vez.

Não se acanham de receber um prato de comida; e é muito bonito ver que ele deixa que ela coma até se fartar, para só então comer o que restou no prato.

A paixão dos dois é daquelas que amenizam o calor que nos atormenta ao meio-dia de um sol a pino, que nos suaviza a dor de uma crise existencial, de um amor perdido, de muito mês pro pouco salário.

Muitos tentaram se colocar entre os dois, ser o vértice de um triângulo, mas não conseguiram. O verdadeiro amor não permite essas brechas. Isso é coisa de paixão, sentimento imenso que incendeia o peito, o corpo, a alma, mas se apaga ao primeiro chuvisco. Por isso muitos tentaram, mas não conseguiram. Um terceiro, eles sabem, seria o desequilíbrio, a vertente que separa, a lâmina que corta, fere, sangra e nunca cicatriza completamente.

Tal qual uma Maria Bonita ela não admite rivais. Agride de forma violenta quem dele se aproxima. E faz isso sem cerimônia. Ele, mais calmo, mais tranqüilo, repele todas as fêmeas que o assediam (quem sabe por pura demagogia) para envaidecimento e orgulho dela.

Mas não só as pretensas rivais, todos que passam por eles recebem seus xingamentos, em uma linguagem que somente os dois entendem. E foi por esse grave defeito de personalidade que um dia desses ela se deu mal.

Os ocupantes de uma viatura policial quando pararam e desceram para telefonar, foram agredidos por ela. E, convenhamos, isso não fica bem para uma dama. De acordo com uma testemunha, ao voltar à viatura ainda sob os xingamentos, os policiais se irritaram, o que não nos causa nenhuma surpresa. Sempre tão zens, vez ou outra eles também se irritam. São raros neles esses momentos de raiva, mas compreendemos que manter o bom-humor em uma cidade em que trinta carros são roubados por dia, além de outras ocorrências e, ainda mais sofrer agressões de uma lúmpen sem eira nem beira, tira qualquer um do sério...

Ao sair, o motorista da viatura teria dado marcha ré e atropelado a Pretinha, esse é o nome dela. Ferida, e sangrando muito para desespero de Branco, seu companheiro, que a acompanhou com o olhar desesperado e lacrimejante, ao vê-la sendo levada a uma clínica médica onde ficou durante um mês.

Mês? Mês para mim e para você, leitor, para Branco a ausência da companheira durou anos.

E quem a socorreu? Quem a levou à Clínica? Duas daquelas pessoas que ela xinga diariamente, ou seja: os freqüentadores do bar onde eles ficam em frente, que além de se cotizarem para pagar as despesas do tratamento, se revezaram nas visitas.

O Branco durante aquele mês ficou triste, sorumbático. Mas após uma cirurgia e uma dose maciça de antibióticos, Pretinha voltou. E hoje os dois estão aos cheiros e beijos. Os amigos levaram o Branco para tomar um banho. Afinal, depois de tanto tempo era preciso receber a Pretinha com toda honra.

E afinal, não é o homem o melhor amigo do cão?

Contei esta história à minha amiga Juçara e ela concluiu:

-Mas eles não podem ser cachorros. Só podem ser pessoas encantadas.

-Encantadas por quem, Juçara?

- Ah!... por alguma bruxa invejosa de tanta paixão...

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

Um comentário:

  1. Que lindeza de amor, e mais valioso ainda por se tratar de cachorros. Eles costumam ser fieis ao dono, mas infieis no amor, no entanto são nas duas coisas e por isso mesmo, encantados e encantadores. Parabéns pelo texto, Risomar. Saudades de você.

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