sábado, 5 de novembro de 2011







Cadeira de rodas

* Por Juarez José Viaro

A vida dá voltas, ele sabe, ouviu esse chavão apenas quando criança e agora, adulto, sentado em sua cadeira de rodas motorizada, procura um motivo para acreditar nisso.
Primeiro a fama, a consagração, todo o reconhecimento público de sua participação como apresentador de uma rede de televisão. Depois o escuro, a tragédia, o acidente. Meses de internação, cirurgias, esquecimentos.
Depois a esposa se cansa de tanto esperar pela recuperação, admite que a vida dela não pode aguardar para viver, pede divórcio. Novamente o escuro, o vazio, os pés imóveis, a vida imóvel. Nem falar conseguia, os danos cerebrais tinham sido devastadores. Aos poucos a terapia recomeça a vida, engatinhar, caminhar, andar, falar. Mas uma criança aprende isso naturalmente, um adulto com lesão cerebral dificilmente.
A vida acabou? Pensa em suicídio, mas qual suicídio? Já não podia fazer o que mais gostava e sabia: falar. Então já é a morte em vida. Será? As terapeutas dizem que não, incentivam, ajudam, se esforçam. Ele resiste, viver para quem?
Mas lá no fundo do coração bate um resquício de vida. A esperança de poder andar, mesmo sem falar, reconhecer o mundo, voltar ao mundo dos vivos. Ele se agarra nesse filete que escorre vagaroso pelos seus dedos e resolve voltar à vida. Os instrumentos pouco indicam, os prognósticos se esvaem em números falsos, ele se movimenta lentamente. Alcança o mais profundo lodo do poço, sua água mais barrenta e decide: vai viver.
Meses depois está exercitando ruídos, sussurros, mais adiante uma palavra irreconhecível, mas ainda uma palavra. Depois uma frase, quase inaudível, mais ainda assim um resquício de comunicação com a terapeuta agradecida.
Passam-se alguns anos e está se recuperando. A cadeira de rodas rola pelos lugares favoritos, freqüenta cinemas, teatros, passeia nos parques. Com muita emoção consegue finalizar uma tela, inicia outra.
Mas seu objetivo supremo é a memória. Não a sua, completa, intacta. Mas as dos outros. Procura nos olhares o reconhecimento, a lembrança do que foi. De alguns recebe um aceno, de outros um sorriso, será que se lembram de mim? Corro enternecido com minhas rodas motorizadas procurando um olhar mais aguçado, um gesto mais preciso desse reconhecimento. Não posso viver assim, anônimo. Sou eu, lembra? Pareço gritar. Estou aqui, era aquele, sou este, mas continuo sendo eu mesmo.
As pessoas não me entendem enquanto busco essa cumplicidade. Eu vivo eternamente em suas lembranças, queria poder me imitar nos tempos de televisão para se lembrarem melhor, sou eu, não vêem?
Onde foi que parei minha narração? Ah sim, ele percorre o shopping com sua cadeira de rodas motorizada, buscando o reconhecimento. Eu sinto que vai conseguir, sinto.


* Juarez José Viaro é formado em Letras e Jornalismo. Publicou o livro de poemas “Aroma de Amora” e participou de movimentos literários em Osasco e São Paulo. Tem um romance inédito, “Viagem ao Interior”.

2 comentários:

  1. A deficiência assusta, deprime , desconsola. O texto tenta dizer o contrário. Não há compensação para a dependência, o desastre de ser apenas o espectro do que já se foi. Muitos pensam em suicídio. Depois de conviver na minha casa, cinco anos e três meses com meu pai tetraplégico, babando, de fraldão, sem voz e sem poder engolir, alimentado-se por um buraco no estômago por onde se injetava a cada três horas alimentos numa seringa, eu não tenho dúvidas: matem-me! Ou me deixem me matar!

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  2. Olá! Vc seria o Juarez da Cásper Líbero? Helô.

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