Euforia e mazelas do Natal
* Por Luiz Carlos Monteiro
O Natal perde um pouco do seu ar de festa de comunhão em família para se transformar, cada vez mais, na compulsão febril e destrutiva de um consumo desenfreado e incontrolável. A dispersão em massa torna-se o estigma insustentável e precário de um balanço inexistente do ano que está a se findar. Talvez apenas os solitários contumazes façam uma espécie de avaliação forçada de suas vidas, pois a circunstância e o peso da solidão os obrigam a isso. Aqueles de feitio gregário jamais irão pensar no que se esfumou, quando se constata que o que passa a lhes interessar no instante é a risada larga e ruidosa, a conversa superficial e ininterrupta, os abraços rápidos ou demasiadamente apertados, os beijos que ressoam acalorados, mas nem sempre sinceros.
O chamado espírito natalino leva à tolerância e à aceitação momentânea dos defeitos e fraquezas do outro, por isso aguenta-se os parentes de variada origem e extração, os conhecidos e vizinhos esquivos e os chatos insistentes e de plantão. Faz-se vista grossa para a parcialidade de certos amigos, não se exigindo mais o que eles não tiveram fibra para partilhar durante os dias do ano. Permanece, contudo, aquela secura na garganta pela frustração das coisas inalcançadas e irrealizadas. O aumento salarial que não se teve, o curso planejado que não se fez, o casamento falido que não se conseguiu desfazer, a perda de amizades por motivações fúteis que não se evitou, a doença que se espalhou avassaladora e que não se esperava, a traição e a inveja sempre por perto e que não puderam ser detectadas a tempo. E ainda, um desejado equilíbrio interno de corpo e cabeça que não se obteve, esfarelou-se ou se manifestou incipiente e sem força.
Quem mais ganha com o Natal é o banqueiro e o contraventor, o grande comerciante e o capitão-de-indústria, com o fabrico e a venda acelerada de produtos os mais diversos, legais ou ilícitos, como bebidas e frios, roupas e calçados, eletrodomésticos e automóveis, onde não estão descartados o contrabando e a sonegação. As agências de viagens e guichês de aeroportos, estações de metrô e terminais rodoviários, empresas de transporte clandestino também aumentam seus lucros em progressão vertiginosa. Contudo, os consumidores mais amenos e conscientes preferem gastar com música, cinema, teatro e livros.
Os bebedores inveterados arranjam, pelo Natal, um pretexto seguro e perdoável para encher a cara. Muitos desejam passar despercebidos, enquanto que outra fração busca justamente o contrário, a exposição pública, um picadeiro gratuito para uma atuação cafajeste e despudorada. Os que fazem parte da categoria enviesada dos ajustados, sovinas e conformistas absorvem tacanhamente a festa como quem calcula os seus efeitos sobre a rotina, o bolso e alguma remota mudança de vida.
As confraternizações de partidos políticos, associações de classe, clubes esportivos, empresas de ramos e interesses diversificados, retocam o que vinha sorrateira ou explicitamente se deteriorando. Assim acontece com as relações de dominação nos âmbitos empresarial e político, público ou privado, que muitas vezes se mostram penosamente difíceis de ser contornadas e controladas, em qualquer nível hierárquico do mundo da política, dos mass media e do trabalho. É nesse sentido que comungam instituições de procedência e intencionalidades díspares, filantrópicas, não-governamentais ou midiáticas, que se mobilizam e unem para tentar diminuir, mesmo que por algumas horas, a fome, a seminudez e a ausência de brinquedos e presentes nas famílias pobres.
Fica praticamente impossível imaginar, na ambiência familiar de fartura e pachorra, o Natal dos prisioneiros, o fim de ano dos sem teto ou sem terra, dos que vivem à beira do suicídio, dos que agonizam nos hospitais, de todos os que se encontram mergulhados, como disse o nosso Presidente há pouco, “na merda”. A parcela significante da população que dança, canta, brinca, bebe e come nem de longe percebe a tremenda solidão e o isolamento dos que não gozam de nenhum privilégio e nem dispõem de parentes ou amigos que os confortem. Porque a criatura mais violenta ou asquerosa, o assassino mais frio e impiedoso, o sujeito mais mesquinho e abjeto guarda no seu íntimo, um mínimo que seja, de pertencimento e ligação à raça humana.
As numerosas missas católicas celebradas intentam reafirmar o espírito religioso, o serviço chegando a atingir, ainda que sem cooptar nem redimir, ateus confessos e uma gente não-praticante que cultiva uma vacilante e frágil descrença. Os cultos evangélicos logram servir a um papel encarniçado e obsessivo de arrebanhar novas e não tão inocentes ovelhas para as suas fileiras, notadamente aquelas almas que se debatem nas fronteiras da dúvida, da insegurança e da indecisão.
No Natal, ensejam confundir-se no pensamento instantâneo e etéreo propiciado pela euforia o esforço vão e a conquista inesperada, o desejo de felicidade e a impossibilidade de satisfação plena. A necessidade de extravasamento pode permitir atitudes de efêmera liberação antes incubadas e impensáveis ao convívio humano, onde o limite é o ridículo e o desastre. Inimigos e desafetos não conseguem, em determinadas circunstâncias, fugir ao luxo e ao direito de um aperto de mão, embora que, pós-Natal, voltem a ser o que eram, assumam a situação habitual de desavença e intriga.
A perplexidade e o espanto que se emergem do cotidiano inglório nivelam o alcance das batalhas justas e perdidas, alinhando-as às ações hipócritas, aos atos falhos e depressões inomináveis. Entretanto, a festa continua a simbolizar, mesmo nestes tempos de violência extremada e tecnologia da informação, a harmonia propiciada pela ceia farta, a voragem humana que não cessa, como se o ser fosse feito apenas de boca e estômago, de paladar e glutonaria, por mais que se pense e se diga o contrário.
* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com
* Por Luiz Carlos Monteiro
O Natal perde um pouco do seu ar de festa de comunhão em família para se transformar, cada vez mais, na compulsão febril e destrutiva de um consumo desenfreado e incontrolável. A dispersão em massa torna-se o estigma insustentável e precário de um balanço inexistente do ano que está a se findar. Talvez apenas os solitários contumazes façam uma espécie de avaliação forçada de suas vidas, pois a circunstância e o peso da solidão os obrigam a isso. Aqueles de feitio gregário jamais irão pensar no que se esfumou, quando se constata que o que passa a lhes interessar no instante é a risada larga e ruidosa, a conversa superficial e ininterrupta, os abraços rápidos ou demasiadamente apertados, os beijos que ressoam acalorados, mas nem sempre sinceros.
O chamado espírito natalino leva à tolerância e à aceitação momentânea dos defeitos e fraquezas do outro, por isso aguenta-se os parentes de variada origem e extração, os conhecidos e vizinhos esquivos e os chatos insistentes e de plantão. Faz-se vista grossa para a parcialidade de certos amigos, não se exigindo mais o que eles não tiveram fibra para partilhar durante os dias do ano. Permanece, contudo, aquela secura na garganta pela frustração das coisas inalcançadas e irrealizadas. O aumento salarial que não se teve, o curso planejado que não se fez, o casamento falido que não se conseguiu desfazer, a perda de amizades por motivações fúteis que não se evitou, a doença que se espalhou avassaladora e que não se esperava, a traição e a inveja sempre por perto e que não puderam ser detectadas a tempo. E ainda, um desejado equilíbrio interno de corpo e cabeça que não se obteve, esfarelou-se ou se manifestou incipiente e sem força.
Quem mais ganha com o Natal é o banqueiro e o contraventor, o grande comerciante e o capitão-de-indústria, com o fabrico e a venda acelerada de produtos os mais diversos, legais ou ilícitos, como bebidas e frios, roupas e calçados, eletrodomésticos e automóveis, onde não estão descartados o contrabando e a sonegação. As agências de viagens e guichês de aeroportos, estações de metrô e terminais rodoviários, empresas de transporte clandestino também aumentam seus lucros em progressão vertiginosa. Contudo, os consumidores mais amenos e conscientes preferem gastar com música, cinema, teatro e livros.
Os bebedores inveterados arranjam, pelo Natal, um pretexto seguro e perdoável para encher a cara. Muitos desejam passar despercebidos, enquanto que outra fração busca justamente o contrário, a exposição pública, um picadeiro gratuito para uma atuação cafajeste e despudorada. Os que fazem parte da categoria enviesada dos ajustados, sovinas e conformistas absorvem tacanhamente a festa como quem calcula os seus efeitos sobre a rotina, o bolso e alguma remota mudança de vida.
As confraternizações de partidos políticos, associações de classe, clubes esportivos, empresas de ramos e interesses diversificados, retocam o que vinha sorrateira ou explicitamente se deteriorando. Assim acontece com as relações de dominação nos âmbitos empresarial e político, público ou privado, que muitas vezes se mostram penosamente difíceis de ser contornadas e controladas, em qualquer nível hierárquico do mundo da política, dos mass media e do trabalho. É nesse sentido que comungam instituições de procedência e intencionalidades díspares, filantrópicas, não-governamentais ou midiáticas, que se mobilizam e unem para tentar diminuir, mesmo que por algumas horas, a fome, a seminudez e a ausência de brinquedos e presentes nas famílias pobres.
Fica praticamente impossível imaginar, na ambiência familiar de fartura e pachorra, o Natal dos prisioneiros, o fim de ano dos sem teto ou sem terra, dos que vivem à beira do suicídio, dos que agonizam nos hospitais, de todos os que se encontram mergulhados, como disse o nosso Presidente há pouco, “na merda”. A parcela significante da população que dança, canta, brinca, bebe e come nem de longe percebe a tremenda solidão e o isolamento dos que não gozam de nenhum privilégio e nem dispõem de parentes ou amigos que os confortem. Porque a criatura mais violenta ou asquerosa, o assassino mais frio e impiedoso, o sujeito mais mesquinho e abjeto guarda no seu íntimo, um mínimo que seja, de pertencimento e ligação à raça humana.
As numerosas missas católicas celebradas intentam reafirmar o espírito religioso, o serviço chegando a atingir, ainda que sem cooptar nem redimir, ateus confessos e uma gente não-praticante que cultiva uma vacilante e frágil descrença. Os cultos evangélicos logram servir a um papel encarniçado e obsessivo de arrebanhar novas e não tão inocentes ovelhas para as suas fileiras, notadamente aquelas almas que se debatem nas fronteiras da dúvida, da insegurança e da indecisão.
No Natal, ensejam confundir-se no pensamento instantâneo e etéreo propiciado pela euforia o esforço vão e a conquista inesperada, o desejo de felicidade e a impossibilidade de satisfação plena. A necessidade de extravasamento pode permitir atitudes de efêmera liberação antes incubadas e impensáveis ao convívio humano, onde o limite é o ridículo e o desastre. Inimigos e desafetos não conseguem, em determinadas circunstâncias, fugir ao luxo e ao direito de um aperto de mão, embora que, pós-Natal, voltem a ser o que eram, assumam a situação habitual de desavença e intriga.
A perplexidade e o espanto que se emergem do cotidiano inglório nivelam o alcance das batalhas justas e perdidas, alinhando-as às ações hipócritas, aos atos falhos e depressões inomináveis. Entretanto, a festa continua a simbolizar, mesmo nestes tempos de violência extremada e tecnologia da informação, a harmonia propiciada pela ceia farta, a voragem humana que não cessa, como se o ser fosse feito apenas de boca e estômago, de paladar e glutonaria, por mais que se pense e se diga o contrário.
* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com
Permaneço frugal em todos os meus hábitos, sem amargura se não encontro no Natal o equilíbrio e a felicidade. Análise social cruenta, abordando vários aspectos dessa festa cristã, cheia de panetones, perus e hipocrisia. Pelo menos nas mesas que podem.
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