

O peso da palavra
* Por Risomar Fasanaro
* Por Risomar Fasanaro
-O senhor está despedido. Passe no Departamento Pessoal que lá vão lhe instruir sobre como deverá proceder.
As palavras vinham de um rosto, mas ele só viu a boca. Uma boca enorme que parecia querer engoli-lo. Não que o diretor do colégio houvesse gritado, mas é que aquela voz lhe pareceu tão intensa que só poderia ter saído de algo enorme, com capacidade de produzir o ruído de um trovão que nos pega desprevenido. O peso das palavras. Apenas à sua lembrança sentia um estremecimento. Como se passassem por sua garganta, ferindo-a. Como se lhe mergulhassem na alma.
E apesar de fortes, a ponto de lhe provocar um estremecimento, aquelas palavras vinham de longe, como se tivessem viajado por longos túneis. Túneis que não sabemos onde começam nem onde terminam, deles só conhecemos o meio, a escuridão. Com o jornal do dia um pouco amassado pela viagem de trem, saiu sem pedir explicações.
O diretor ali parado, sem jeito, parecia esperar que ele lhe perguntasse o motivo, exigisse a razão da demissão, e como ele não pediu, não perguntou nada, o homem ficou ali, sem jeito, parado próximo à porta, sem saber se saía ou se ficava. Era muito calado. Desde menino. Às vezes o pai lhe batia injustamente, por faltas que ele não cometera, e ele não se defendia, nunca perguntava por quê. Fora assim no dia que a namorada terminara com ele sem lhe dar explicações. Simplesmente abaixara a cabeça para conter as lágrimas, e fora embora. Mas isso já fazia muito tempo, Não sabia por que aquela lembrança lhe vinha agora, se havia anos que aquilo acontecera.
Em casa a mulher perguntaria: “por que não perguntou o motivo, não pediu explicações? Você nunca faltou, jamais chegou atrasado. Por que, por quê? Bem que eu lhe disse que essas escolas particulares não respeitam os professores...Que só pensam em dinheiro. Cobram uma fortuna dos alunos, e remuneram mal os professores. Você não me ouviu..” E ele ali, mudo.
Era sempre assim, a mulher aproveitava qualquer deixa para criticar os políticos, os patrões... Como se aquilo fosse resolver. Fazia comício nos supermercados, por isso ele nem a acompanhava quando ia às compras. Em pouco tempo ela criava uma cizânia, e provocava revolta nos outros clientes. Ele também vivia insatisfeito com muita coisa, mas, ao contrário dela, silenciava. No trem de volta as mesmas pessoas, as mesmas conversas encardidas... e dentro dele as palavras do diretor se espalhando em raízes.
Um jovem de uns trinta anos passou pedindo esmolas: “Eu podia estar roubando, assaltando...mas não. Estou aqui contando com a bondade dos senhores, pedindo sua ajuda. Estou desempregado, minha mulher está doente, não tenho nem como comprar comida, quanto mais comprar remédios...”
Sentiu calafrios. E se ele nunca mais encontrasse outro emprego? Não tinha terminado a licenciatura, sendo assim talvez nunca mais encontrasse outra escola que o aceitasse. Já tentara nas escolas do estado, mas exigiam que pelo menos estivesse cursando a faculdade, e como poderia se precisava trabalhar o dia todo para dar conta do sustento da família? Mal conseguiu concluir o bacharelado.
E se tivesse de pedir esmolas nos trens, no metrô? Afinal, com 47 anos agora seria difícil parar de lecionar e dedicar-se a outro trabalho, fora da área da educação. Desceu do trem e dirigiu-se à saída. Um homem com um realejo vendia a sorte por dois reais. Viu-o girar a manivela da máquina italiana, as notas musicais se misturando umas às outras, e de lá de dentro os sons saindo, se espalhando no ar. Que bom se aquela máquina misturasse a sorte das pessoas, e dividisse-as em porções iguais, de forma a trazer às infelizes um pouco de felicidade.
Observou a multidão que caminhava. Em cada rosto uma letra. Formavam um estranho alfabeto que ele não conseguia decifrar. Do mesmo jeito que não conseguiu decifrar o que havia por trás das palavras do diretor do departamento, nem da ex-namorada. As palavras, pensou, deveriam ter a maciez das aves em sua primeira plumagem, a sedosidade dos seixos do fundo dos rios. Ele não as entenderia nunca. Elas não têm um peso certo, em um momento são leves como flocos de algodão, em outros, a mesma frase tem a aridez do aço, do ferro.
Talvez viesse daí seu jeito calado, seu silêncio tão incompreendido. “A vida”, pensou, “é tão misteriosa quanto as palavras”. Só que para elas ainda existe um dicionário, e a vida... A vida não tem bula, não tem roteiro, nem tradutor.
* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
As palavras vinham de um rosto, mas ele só viu a boca. Uma boca enorme que parecia querer engoli-lo. Não que o diretor do colégio houvesse gritado, mas é que aquela voz lhe pareceu tão intensa que só poderia ter saído de algo enorme, com capacidade de produzir o ruído de um trovão que nos pega desprevenido. O peso das palavras. Apenas à sua lembrança sentia um estremecimento. Como se passassem por sua garganta, ferindo-a. Como se lhe mergulhassem na alma.
E apesar de fortes, a ponto de lhe provocar um estremecimento, aquelas palavras vinham de longe, como se tivessem viajado por longos túneis. Túneis que não sabemos onde começam nem onde terminam, deles só conhecemos o meio, a escuridão. Com o jornal do dia um pouco amassado pela viagem de trem, saiu sem pedir explicações.
O diretor ali parado, sem jeito, parecia esperar que ele lhe perguntasse o motivo, exigisse a razão da demissão, e como ele não pediu, não perguntou nada, o homem ficou ali, sem jeito, parado próximo à porta, sem saber se saía ou se ficava. Era muito calado. Desde menino. Às vezes o pai lhe batia injustamente, por faltas que ele não cometera, e ele não se defendia, nunca perguntava por quê. Fora assim no dia que a namorada terminara com ele sem lhe dar explicações. Simplesmente abaixara a cabeça para conter as lágrimas, e fora embora. Mas isso já fazia muito tempo, Não sabia por que aquela lembrança lhe vinha agora, se havia anos que aquilo acontecera.
Em casa a mulher perguntaria: “por que não perguntou o motivo, não pediu explicações? Você nunca faltou, jamais chegou atrasado. Por que, por quê? Bem que eu lhe disse que essas escolas particulares não respeitam os professores...Que só pensam em dinheiro. Cobram uma fortuna dos alunos, e remuneram mal os professores. Você não me ouviu..” E ele ali, mudo.
Era sempre assim, a mulher aproveitava qualquer deixa para criticar os políticos, os patrões... Como se aquilo fosse resolver. Fazia comício nos supermercados, por isso ele nem a acompanhava quando ia às compras. Em pouco tempo ela criava uma cizânia, e provocava revolta nos outros clientes. Ele também vivia insatisfeito com muita coisa, mas, ao contrário dela, silenciava. No trem de volta as mesmas pessoas, as mesmas conversas encardidas... e dentro dele as palavras do diretor se espalhando em raízes.
Um jovem de uns trinta anos passou pedindo esmolas: “Eu podia estar roubando, assaltando...mas não. Estou aqui contando com a bondade dos senhores, pedindo sua ajuda. Estou desempregado, minha mulher está doente, não tenho nem como comprar comida, quanto mais comprar remédios...”
Sentiu calafrios. E se ele nunca mais encontrasse outro emprego? Não tinha terminado a licenciatura, sendo assim talvez nunca mais encontrasse outra escola que o aceitasse. Já tentara nas escolas do estado, mas exigiam que pelo menos estivesse cursando a faculdade, e como poderia se precisava trabalhar o dia todo para dar conta do sustento da família? Mal conseguiu concluir o bacharelado.
E se tivesse de pedir esmolas nos trens, no metrô? Afinal, com 47 anos agora seria difícil parar de lecionar e dedicar-se a outro trabalho, fora da área da educação. Desceu do trem e dirigiu-se à saída. Um homem com um realejo vendia a sorte por dois reais. Viu-o girar a manivela da máquina italiana, as notas musicais se misturando umas às outras, e de lá de dentro os sons saindo, se espalhando no ar. Que bom se aquela máquina misturasse a sorte das pessoas, e dividisse-as em porções iguais, de forma a trazer às infelizes um pouco de felicidade.
Observou a multidão que caminhava. Em cada rosto uma letra. Formavam um estranho alfabeto que ele não conseguia decifrar. Do mesmo jeito que não conseguiu decifrar o que havia por trás das palavras do diretor do departamento, nem da ex-namorada. As palavras, pensou, deveriam ter a maciez das aves em sua primeira plumagem, a sedosidade dos seixos do fundo dos rios. Ele não as entenderia nunca. Elas não têm um peso certo, em um momento são leves como flocos de algodão, em outros, a mesma frase tem a aridez do aço, do ferro.
Talvez viesse daí seu jeito calado, seu silêncio tão incompreendido. “A vida”, pensou, “é tão misteriosa quanto as palavras”. Só que para elas ainda existe um dicionário, e a vida... A vida não tem bula, não tem roteiro, nem tradutor.
* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
A palavra pode ferir tanto como uma navalha.
ResponderExcluirMas, pior do que uma palavra mal dita é o silêncio.
Belo texto Riso.
beijos
A vida não vem com manual. Um texto sensível e muito bem escrito, Risomar! Bjs
ResponderExcluirEstranha racionalidade e lucidez de filósofo licenciado pela vida atacou o professor. Tantas imagens belas, Risomar, você extraiu desse fato corriqueiro, e nada banal em se tratando da própria vida. A mudez foi consequência daqueles estados de apoplexia que podem nos assaltar nas dores extremas. Mas seu personagem vai sobreviver.
ResponderExcluirMuito profundo, Risomar, um texto que realmente nos toca. Em alguns momentos os fatos são tão avassaladores que silenciar é uma forma de tentar prosseguir. Um beijo!
ResponderExcluirNúbia, Evelyne, Mara, Sayonara: gratíssima pelos comentários. Contar com leitoras tão sensíveis é realmente uma dádiva. E obrigada ao nosso editor Pedro, pela sensibilidade na escolha da ilustração.
ResponderExcluirBeijos