segunda-feira, 13 de setembro de 2010




Aquela febre engravidou até os sentidos de R. Garcia

* Por Eduardo Murta


O nome do lugar já bastava para encantar. Vila Bela da Santíssima Trindade. E aquelas histórias que beiravam o folclórico, então, só alimentavam o fascínio pela missão. R. Garcia não pensaria duas vezes. Mandassem fazer os arranjos para a viagem que ele iria. Sequer notara a sutil provocação. A de se escolher uma figura talhada na órbita urbana, ancorada invariavelmente em premissas científicas e agnóstico para escrever a história daquela gente quase desplugada do mundo. Que se enfeitava em cores para celebrar as festas à fecundidade e enxergava a procriação como uma das margens do imponderável.

A mala estava pronta, quando se deu conta dos primeiros relatos sobre o distrito. Instigantes. A população crescendo a uma velocidade de colméias. Meninas-mães, meninos-pais sem ter ainda firmado os dentes. E lá se tratando como efeito singelo de uma bebida local o que aos olhos dos forasteiros soava feito fenômeno: a proliferação sem freios. O preparado, cujo nome se encerrava em seis sílabas doces, era cultuado como uma espécie de amuleto da fertilidade. Kanjinjim.

R. Garcia anotou palavra por palavra no caderno verde que tomaria por agenda de reportagem. E sublinhou as particularidades que o fariam gelar, caminho afora: nada menos que três jornalistas desaparecidos na rota de apuração sobre o produto. Sem pista sequer. Pensou, claro, em se travestir. Padre... Não, não casava o perfil. Psicólogo, hummm... Pouco convincente para um vilarejo em que ruas de terra eram sinal de outra forma de ver o mundo. Barbeiro... Bom, porque salões eram cenários de segredos, mas faltaria um detalhe essencial: as mulheres. Nada sem elas se revelaria.

Aportou por lá na noite daquela quinta-feira carregando um aparato que o transformaria em verdadeiro caixeiro-viajante. Frascos de perfume, batons, lenços, isqueiros, pentes, barbeador... Se decidira. Bateria de porta em porta, se apresentaria com nome pomposo: prazer, Olegário Fortuna ao seu dispor. Gravata borboleta, sapatos escovados e óculos aros de tartaruga só para emprestar grau mínimo de severidade ao rosto juvenil. Fez sucesso, acolhido como novidade. E incorporado às intimidades a ponto de enjoar do café com geléia preta de mocotó, tradição na Vila Bela da Santíssima Trindade.

Introduzia uma pergunta aqui, uma dúvida ali, um comentário à frente. Ia azeitando as informações, dando vida ao quebra-cabeças. Descobrindo coisas ao sabor do acaso. Que Marilu já perdera a conta e nome dos filhos, tantos eram. Que Jacinto, aos 22, se convertera em avô. E que, sigilo supremo, os porões rurais se abriam a uma sociedade secreta dedicada a patrocinar torneios de orgasmos. Prêmios para o mais alongado, ao que se desse em escalas múltiplas, ao que inovasse no quesito originalidade. Viu lenda em todos os relatos, mas resolveu registrar letra por letra.

Desatando o novelo, foi jogando calor sobre a bruma em que o Kanjinjim estava envolto. Delírio, desvendara, a tese de que era herança da cultura escrava. Farsa, na verdade, porque nascera em clubes de caminhoneiros de beira de estrada, ali pela década de 60. Tudo para incendiar os desejos nos bailinhos recatados do lugarejo. A fórmula surgiu assim, como do nada, rodou de mão em mão, reapareceu numa festa, noutra e, ano seguinte, carregava o carimbo de afrodisíaco. Nada mais que chá de sementes de abóbora, raspa de gengibre, cachaça desdobrada e canela.

Olegário Fortuna, melhor, R. Garcia, já tinha ponto por ponto o que precisava para escrever, despir o mistério por inteiro. Começo, meio e fim. Incluindo o paradeiro dos jornalistas que o precederam, todos embarcados como alimento para leões de circos paraguaios. Suas revelações não deixariam pedra sobre pedra. Mas faltava um item fundamental: homem de sangue espanhol, julgava que o trabalho só se legitimaria se ele, a despeito das miragens alheias, também experimentasse o Kanjinjim.

Planejou a volta para a capital, mas agendou antes a despedida no Bar do Zé Pretinho. Fez baixar o primeiro copo à mesa. O segundo... Ao que se recorda, chegara à conta do quinto, quando pousaram-se os dedos dela sobre os dele, entrelaçando-os. Deixou que acontecesse, aleatório, porque era ritual de partida. Estranhou na manhã seguinte, ele e comadre Dolores, nus, lado a lado na cama. Praguejou-se. Mirou-lhe as tetas cansadas, 84 anos de jornada aqui na Terra. Conferiu a penteadeira: duas garrafas de Kanjinjim vazias.
Fez olhar de periscópio, perscrutando. Deu com o quadro negro afixado à parede. Números sobre números em giz. O de agora era um 8 caprichosamente desenhado. Ruminou.... se lembrou das sociedades secretas de culto ao orgasmo. Valei-me!!!! Juntou as roupas num salto. Desacelerou, a que não despertasse a velha Dolores. Pegou o rumo do hotel, da rodoviária, de casa. A vila ficando pra trás, foi desnudando os significados daquela febre que fecundava os poros, engravidava os sentidos. Dela estava disposto a contar tudo. Pensando bem, quase tudo.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.

3 comentários:

  1. Hum...esse kanjinjim não me é estranho.
    Não! Eu não experimentei!
    A curiosidade é terrível mas a ausência de
    sentidos me assusta.
    Abraços Murta.

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  2. Murta: a essa altura deve haver muitos leitores tomando chá de sementes de abóboras com gengibre, cachaça desdobrada e canela.Rs,rs Conto muito bem construido. Adorei .Abraços

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  3. O texto já apareceu por aqui, e pela segunda vez deu show de originalidade. Nesse lugar perdido ninguém faz conta de posses, ouros ou propriedades. A riqueza aqui é outra, e se não cabe nas gavetas do caixão, cabe na memória enquanto ela persistir.

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