sexta-feira, 9 de abril de 2010




Assalto *

** Por Urariano Mota

Doutor Saulo matou-se”. Quando se soube disso à porta do colégio, quando pela manhã os professores souberam que não haveria aula porque o diretor acabara com a própria vida, a reação não foi de espanto. A gorda professora Celestina apenas perguntou: - Foi? E virou a pesada figura para os cantos, à procura de colega com quem dividisse aquela esperada morte. Não foi difícil a procura.

Os professores amontoavam-se como varejeiras à porta do colégio. Estavam impedidos de entrar. Embora o suicídio houvesse ocorrido no apartamento do diretor, a impressão deixada era a de que o porteiro recebera ordem para preservar as salas e os móveis do colégio, como se preservasse a cena do crime. Apesar de estranho, havia nisso alguma razão. De baixa estatura, à maneira de um cãozinho de guarda, o porteiro guardava o mobiliário da ação de vândalos. Já antes do suicídio, espocaram aqui e ali propostas de saque à escola. Antes era apenas um rumor de saque, comentado de passagem, indistinto. Agora, à luz da rua, na calçada pública, ameaçava-se uma força de execução imediata. O que continha os mestres eram alguns impedimentos, que por não atingirem a altura de impedimentos morais, eram pelo menos, concedamos, de educação. Pois entre os civilizados, ou entre pessoas que se desejam civilizadas, um saque não se faz como um bando de macacos que assaltam um bananal.

Havia em primeiro lugar a morte, assim mesmo, no geral. Aquela morte específica, embora desejada, esperada, porque até mesmo previsível, inscrevia-se no gênero mais largo da morte de um ser conhecido. E invadir o espólio, para tomá-lo no dia imediato ao passamento do indivíduo, é feio. Isto não se faz com um pedido de “com licença, desculpe, vou pegar o que é meu”. O defunto diretor sequer havia sido enterrado. Ele mal havia alcançado o status de defunto. Era como se de uma hora para outra ele ainda pudesse aparecer em saudáveis carne e osso, imponente, para lhes dizer, “os senhores já festejavam a minha morte? Pois saibam que tudo é boato”. Havia, portanto, que se passar pela via insuportável de se parecer educado. Era preciso matá-lo uma segunda vez, queremos dizer, matá-lo pela lembrança dos seus atos.

Dizia o professor Cássio ao pequeno grupo que se formara a seu redor:
-Ele não tinha outra saída. Estava encurralado. Ou ele era um farsante, um mentiroso sem-vergonha, sem aquele problema todo ... por esse caminho ele continuava vivo, rindo da gente. Ou então ele estava realmente enrascado, sem saída, afundado na miséria, e aí acabou com a vida. Deve ter sido isso. Com certeza ele preferiu morrer como diretor do Dom Vital.
-Morreu de quê? – pergunta Gusmão.
-À bala.
-Isso não importa. Eu quero saber se ele estava com alguma doença... Ele estava com Aids?
-Eu não sei, podia até estar ... mas Aids tem tratamento, acabar com a vida não é tratamento.
-Muito bonito!... – retoma Gusmão. – Com isso ele resolveu o problema dele, resolveu lá pra ele. E nós, como é que ficamos? Os salários atrasados, quem é que paga? E é assim?
-Ele foi é muito covarde – intervém Lurdes, a coordenadora. – Todo suicida é um covarde, o senhor não acha?
-É, pode ser... – o professor Cássio sonda o rumo dos ventos: para que lado seguem as opiniões? Os comentários vêm:
-Sujeitão covarde...

O professor Cássio então percebe que a defesa do morto é o mesmo que baixar à sepultura com o defunto. Então avança:
-Era covarde mesmo. Agora eu me lembro: ele sempre foi. Vocês não viram como ele fez quando a aluna morreu? Ele entregou todos os professores à delegada! Entregou fichinhas batidas de todos nós à polícia.
-Foi? Eu não sabia... – surpreende-se Gusmão. – Ah, foi assim?
-Claro. Um amigo meu, da Secretaria de Segurança, me disse. Não é verdade, professor? – Dirige-se a Santiago.

O professor Santiago, apesar de fazer parte do grupo, parece dormir de olhos abertos.
-Não foi, professor? – Cássio toca no ombro de Santiago.
-O quê?
-Saulo entregou os nomes de todos os professores como suspeitos da morte de Cristina. Não foi?
-O quê? Eu não sabia.
-Mas já desconfiava, não é, professor? Tava na cara. O mestre não é burro.
-Desconfiava assim, de certa maneira ... mas não o sabia.

O professor Santiago encontra-se, mais uma vez, absolutamente deslocado. Agora mesmo, se houvesse um saque, um estouro de boiada, ele seria atropelado. Sente vontade de sair, para um canto sozinho, para melhor refletir. Mas ao mesmo tempo, desconfiado, teme ausentar-se do burburinho. O que diriam dele, quando desse as costas? E por isso continua no grupo, em penitência.

Em outro grupo levanta a voz o professor Antônio Luís.
-Gente, ele teve lá suas razões para morrer. Mas nós temos razões de sobra para continuar vivos. O nosso destino está em nossas mãos.

Ele assim fala sem se dar conta de que o destino de toda aquela gente toma um rumo que dispensa uma sensata direção.
-O que vamos fazer? – continua.
-Saque! – ouve-se.
-Gente, vamos pensar direito. Olhem a nossa posição, nós somos professores. Nós não somos assaltantes.
-Saque!

Era como se alguém, numa atitude típica de aluno moleque, gritasse a palavra e se escondesse. Com a diferença de que não se escondia por gaiatice, por instinto de se fazer engraçado. Escondia-se por não saber ainda o limite entre o crime justo e o crime bandido.
-Minha gente, escutem – insiste o professor Antônio Luís. – Não é hora de medidas extremas.
-E quando será hora? – ouve-se. O que ele dissesse, diante da urgência, já era previsível. Seria imediatamente contestado. Mas continua:
-Nós temos um papel ... – O professor Antônio Luís aconselha como se fosse um velho, estóico, que aconselhasse jovens a como agir diante do sexo. Ou, pior: como se recomendasse o suportar o fogo sem o auxílio de água em meio à fogueira. – Lembrem-se, nós somos professores...

Não gargalham a isto porque a hora não era de gargalhar. Se a gargalhada fosse o aparecimento de bocarras para o consumo rápido, para o que lhes matasse a fome, então teriam gargalhado. O professor Antônio Luís, até ali, não percebera que não estava diante de gente ou de professores. Eram apenas seres de músculos, nervos e necessidades, primárias. Mas por sentir, rápido, que perdia terreno para a massa que se adiantava, que já o rejeitava – e o que é pior, para um líder, que o sentimento de rejeição? -, então levantou a voz até um tom esganiçado, com a jugular a ponto de lhe saltar do pescoço. Radicalizou, com flamantes palavras de ordem:
-Ninguém vai nos fazer de cachorros! Os trabalhadores de educação...

Era tarde. O apelo chegou atrasado pelo menos 5 minutos. Ninguém mais o ouvia. Há um tempo em que as palavras perdem o sentido, porque a própria realidade, no clímax, as dispensa. Diz-se “vou matá-lo” como um projeto. Mas “estou matando-o, agora”, já não se diz. Faz-se. Completa-se. Sem anunciar, sem enunciar. A palavra “saque” antes dita com vergonha, com receio, deixou de ser dita. Porque o que se viu foi.

O porteiro foi derrubado. Ele quis puxar da peixeira, mas bem antes de querer já estava sendo pisado. Os alunos, a esta altura concentrados ao longo do muro do Colégio, pararam as brincadeiras. Ou melhor, foram parados pelo espetáculo a que assistiam, atônitos.
-O que é isto? – uma aluna conseguiu perguntar.

O que era, nenhum professor poderia explicar. Os mestres estavam no olho do furacão. Ouviam-se gritos de guerra. A professora Celestina balouçava o gordo e vultoso traseiro ao compasso dos roliços braços. Que insuspeita agilidade em seus 100 quilos! O professor Gusmão, aos saltos, pulava imaginários e reais obstáculos, como um alce. Na verdade, ser bípede, ele queria imprimir maior velocidade a seus movimentos, correr livre, mas as pessoas à frente o barravam. Por isso ele pulava, deixando o redondo ventre jogado para o lado, à maneira de uma bolsa a tiracolo. Saltava quadrados de cerâmica, em linha que gostaria reta: esbarrava e voltava, e pela diagonal ia. O professor Cássio furava, furava como um furão, focinhando com o focinho de aríete pela massa, tirando partido de sua magreza, abaixando-se, voando por entre o espaço das cinturas bojudas à frente. Ah, era não só um espetáculo aos olhos dos meninos. Era uma lição da pedagogia da sobrevivência. Era digno de se ver a coordenadora de disciplina, a tia Lurdes, com o seu porte alto e altivo empurrando os colegas, às cotoveladas, aos tropeços na saia justa, equilibrando-se maravilhosamente nos sapatos altos, que não tivera tempo de tirar.
-Uuuuh! Iarruuuuu! – ouvia-se.

Havia um misto de gozo e vingança no assalto. A professora Rosa, de ordinário tão delicada e elegante, tinha o penteado e as roupas desfeitas. Suava e tremia, mas não era de medo. Era de ânsia, porque estava possuída por um espírito de demônio, com gana por objetos, quaisquer objetos, fossem o que fossem. Daquele espólio ela haveria de arrancar algum pedaço, urgente. E por esse caminho ia também, quem diria, a pessoa de confiança do Dr. Saulo, a secretária Dona Augusta. A princípio ela entrara como que empurrada. Depois, para acompanhar, fazer-se testemunha do estrago, afinal ela era ali a própria Administração. Mas ao ver os primeiros resgates, ou melhor, os primeiros butins, ela se rendeu. Rendeu-se ao que seriam os inimigos, tornando-se ela própria um deles. Jogou-se escada acima de um salto, arrancou da parede da secretaria o crucifixo. Quem lhe suspeitasse alguma intenção devota, perdeu logo a esperança. Ó vós, que entrais, deixai, porque ela abraçou uma impressora, pondo-lhe por cima o Jesus que a abençoaria. Por hipótese Cristo a abençoaria, porque Cristo não viu: num rompante de pudor, Dona Augusta virou a imagem, deixando-a de bruços. O oco do molde é que a viu. E como se tivesse mais que dois braços, sobre a CPU do micro quis dar um vôo de rapina. Mas já dela tomava conta o professor Antônio Luís. E nisso o professor cedeu porque, como diria mais tarde, havia entrado em sintonia: “fui levado pelo rio e sentimento da massa”. Mui dignamente, curvava-se para apanhar a CPU, mais o monitor, mais a sua mesinha. A seu favor, diga-se, nada mais quis.

A moral do saque, pelo menos no discurso, é que ele foi gerado pela indignação dos mestres frente aos direitos trabalhistas jamais honrados. Mas logo, logo deixou de ser “a voz ativa da necessidade”, como o conceituaria o professor Antônio Luís. Supondo que exista uma tênue distinção, uma finíssima fronteira, o saque logo passou a ser furto, furto pura e simplesmente qualificado. Gavetas de mesas eram arrombadas, à procura de dinheiro, de cédulas, na vã esperança de que pagamentos de mensalidades dormissem lá. Talonários de cheques foram subtraídos, na ainda mais vã esperança de que os cheques, como uma varinha de condão, realizassem fundos de dinheiro vivo na conta bancária. Tentou-se abrir o cofre, não por arte de combinações de números pensadas, que para isso não havia tempo, mas por martelo, formão, que se revelaram inúteis, porque os mestres não possuíam a combinação de um operário com um arrombador. O cofre, pesado, restou incólume, ainda que jogado com raiva ao chão.

É sintomático que mesmo nessa festa de ratos na casa abandonada pelo dono, é sintomático que mesmo naquelas circunstâncias os mestres tinham a consciência do tempo escasso para o exercício dos seus direitos. Os seus olhos corriam, numa visão zoom, pegavam canetas, jogavam-nas fora, pegavam relógios, desprezavam-nos, porque logo atingiam algo de maior valor. Aparelhos de ar-condicionado, por exemplo. O professor Gusmão pôs um à cabeça, enquanto dos bolsos caíam-lhe óculos escuros e trancelins do Diretor. Cássio apossou-se de um televisor e de um rádio, no que ficou muito frustrado, porque de olhos gulosos viu que um aparelho DVD seguia à sua frente, nas mãos da professora Celestina.

As professoras do maternal e do primário, ao saque, ao furto, e ao que mais Deus lhes provesse, já estavam incorporadas. Como se obedecessem a uma hierarquia, deixaram o andar de cima para os mestres dos ensinos fundamental e médio. Satisfizeram-se na Cantina. Arrombada a porta, escancararam a grande geladeira e de lá retiraram sacos de leite, conjuntos de potinhos de iogurte, refrigerantes, queijos, margarina. E frangos congelados. Boas mães de família que eram, não esqueceram talheres, conchas, pratos e torradeiras. Salgadinhos, chocolates, bombons, pirulitos, pipocas, e toda sorte de quinquilharias da infância também foram aceitos. A coisa já estava bem longe do exercício ativo da cidadania, ou da legítima expressão da irreprimível revolta. A coisa já era a própria festa da anarquia. Houvesse barris de chope, as serpentinas seriam ativadas para que jorrassem álcool para as bocas e para as mãos. Houvesse criação de porcos e de galinhas, com certeza seriam apenas levados, porque não haveria tempo para uma larga, guerreira e geral confraternização. A coisa era o mais anárquico exercício do poder da oportunidade. Era pegar e gozar, ou largar. Era assaltar e correr.

Fato extraordinário: em menos de 10 minutos já não havia objetos valiosos para carregar. O patrimônio de mais de 20 anos esgotara-se antes que alguém tivesse o tino de chamar a polícia. Frustrados, os que não encontraram nada de bom para furtar, passaram à depredação. Janelas tiveram os vidros quebrados com pedras, com apagadores de giz, e com cadeiras. Havia um cheiro de suor e de álcool azedo por entre os objetos, um ar pestilento que exigia sangue. Possuísse uma segunda vida, o diretor não teria muito tempo para desfrutá-la. Seria mais uma vez morto, para que os mestres cantassem em coro sobre o seu cadáver: varonil vingança amada, salve, salve.

A revolta do saque teve ainda dois movimentos, que correram à sua margem. No primeiro deles, durante, com o professor Santiago. Ele, que houvera sido arrastado pela massa, trêmulo voltou para a rua. Aproximou-se dos alunos, e, olhando para os lados, apontou para o portão aberto:
-Isto é um crime. Vocês estão vendo? Isto é um crime. Vocês são testemunhas. Eu não participei disto.

No segundo deles, depois, com o porteiro. Que se integrou ao saque, tardiamente. Com duas sacolas de plástico ele recolhia troféus, medalhas de jogos colegiais, aparelhos de telefone e outros desprezados, quando a polícia chegou. Surpreendido em flagrante delito, afirmou pálido:
-Eu estava só fazendo a limpeza.

Aos empurrões, tapas e pontapés foi preso.

* Do livro O Caso Dom Vital

** Jornalista e escritor

Um comentário:

  1. Motivos legítimos para buscar seus direitos, e depois estranhos motivos para a depredação. Sozinhos pensamos, mas em grupo nada mais somos do que uma turba ignara e sem razão.

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