segunda-feira, 12 de abril de 2010




Reservo uma pétala só para ti

* Por Eduardo Murta

Há um traço delicadamente diabólico nos olhos do homem que assenta, miras de gavião, à sétima mesa do bar. Praça da Estação, 3 da madrugada, aquelas mulheres no plantão da noite pouco ou nada se aperceberão desses sinais. Uma logo estará enredada, bêbada e só, na atmosfera de esfinge em que o estranho se metia. Fala mansa, curta. Sedução pós-graduada.

Era assim, discreto, que saía de cena acompanhado. As órbitas num verde-compaixão, traços bem desenhados, ares de galã carente. Teatro irretocável. Porque se transformava em outro personagem em seguida. Imperativo. Carro andando, portas travadas, a frase era rigorosamente a mesma. Tira a roupa! Havia as que vislumbravam um quê de sexo selvagem naquilo. Outras, sexto sentido, enxergavam a silhueta do pavor.

Cedo se converteriam em estatística macabra. Nove meses, nove tipos em cabelos negros, longos, entrariam nos boletins policiais. Cinco corpos, quatro desaparecidas. A forma metódica presente em todas as cenas: nuas, sete pétalas de rosa amarela junto à face, o telefone celular ainda providencialmente conectado ao número de emergência da polícia. E, tenebroso, uma coleção de mordidas espalhadas entre os seios e as coxas.

Dois anos depois da primeira morte, nenhum sinal do matador em série. Uma vítima pingando aqui, outra ali. Ele recolhido ao ofício de entregas de pizza, em que mapeara boa parte de seus alvos. Até que uma maldita dor de dentes o leve à clínica do bairro. Bingo. O radiologista, amante de perícias criminais, nerd em técnicas forenses, leitor voraz de reportagens policialescas, não teve dúvidas. Era ele.

Marcou retorno estratégico para o dia seguinte e, planejado, assistiu à captura de camarote. O maníaco algemado à cadeira do dentista. Dali para a prisão, sem dizer uma só palavra. Aqueles olhos verde-compaixão sobressaindo, havia quem jurasse – entre suspiros – que um inocente caminhava para a condenação. O debate se banalizou nas rádios e nos jornalecos populares.

Os exames comprovando se tratar da mesma arcada e dando positivo nos testes de sêmen, se deu fenômeno que desafiava a ficção. O preso recebendo algo como três cartas por dia, 20 por semana, 80 por mês. Todas, invariavelmente, falando de amor. Propostas de casamento, transa, papo-cabeça, carícia que confortasse. Lia, minucioso, respondia uma a uma às correspondências. Exagerava nas promessas vãs, alimentando o fã-clube, a que jamais fosse esquecido.

Deu certo. Vinte anos de reclusão, e ele segue como alguém que houvesse assinado pacto sinistro. Quarenta e oito amantes regulares se revezando nas visitas íntimas, em que estabelece orgasmos só dele, chazinhos, pão de queijo e massagens restauradoras em óleo de amêndoa. À cela, lambia o conjunto de fotos do harém, mergulhava nas publicações religiosas e pregava a salvação da alma aos colegas. Garantiu ficha de bom comportamento.

A rotina se repetiu por anos à frente, e veio o 7 de março de 2035. Dia de libertação. O maníaco, pena cumprida, saudado aos moldes de herói da resistência. Banda de música, discurso, tapete de flores. O séquito de namoradas fez guerra de unhas na tática de aproximação. Abriu os braços, flertou com o céu, como não acreditasse. Pediu um cigarro e compreensão.

Bradou que precisava respirar os ares de liberdade. Que as colocaria em sua agenda e reveria a todas. Matilde, 45, foi a primeira. Se derreteu ao telefone. Se perfumou. Se fantasiou em erotismo, num vermelho de escandalizar, as rendas desnudando tudo. Ele a apanhou na virada da noite. Rodou nove quarteirões. Travou as portas e sentenciou: Tira a roupa! As pétalas de rosa amarela esperavam por ela.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas.

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