terça-feira, 5 de janeiro de 2010




Triste cidade

* Por Guilherme Sardas

Tem um tédio nauseante flutuando no ar desse quarto. Quando acordei, era brando. Lá pela hora do almoço, comecei a achar que não sumiria ainda hoje. Depois, não sei por que, achei que era só esperar e ele daria o fora daqui. Aí ele foi tomando forma, preencheu todos os espaços possíveis, de modo que ficou difícil ignorá-lo. Então, parei, admiti sua presença asfixiante, e passei a observá-lo.

E é curioso, interessante. Parece que ele carrega uma cidade de fantasmas dentro dele. Isso, uma cidade mesmo. De manhã, era uma meia-dúzia de gatos pingados, em preto e branco, como que rabiscados à tinta guache. Pareciam fantasmas porque onde a pele dessa gente tava exposta, ela tinha cor branca e nuances de gelo e cinza claro, enquanto os contornos das roupas, da face e dos membros eram negros e bastante imprecisos.

A ladainha que diziam era tão insignificante, que nem dei bola. Mas, agora não. Já é madrugada e o que vejo é uma multidão considerável. O aspecto fantasmagórico da pele ainda é o mesmo, mas os contornos estão mais fortes e a barulheira já me incomoda. Ainda pela manhã, vi um jovem conversando com uma moça de aspecto pobre, mas um sorriso muito, muito bonito. Pude ver que seu espírito a alegrava, deixando-a tão à vontade, que tive a impressão de ela estar três vezes mais bonita do que de fato é.

Seu vestido é vermelho e barato, as alças surradas (parecem prontas a estourar), mas desde a tarde notei sua confiança aumentar, aumentar, aumentar, e então seus saltos espetaram com mais firmeza a calçada e suas pernas roliças passaram a formar um “v” mais aberto e preciso. Prostituta, deduzi. Mas, uma singeleza na face triunfava sobre a alma vendida - e me parece que assim será eternamente.

De repente, as quatro mãos se tocaram – e eu diria que tudo aconteceu com uma “naturalidade sobrenatural” –, e aí suas peles e suas almas tomaram o mesmo rumo. Sim, pude ver até suas cabeças de fantasma, esfumaçadas, se emaranhando: dois corpos e uma cabeça. Foi o que vi. E lá pelo fim de tarde os dois partiram, rompendo as margens nubladas da cidade. Aí meu olhar escorregou para um senhor inquieto, que fitava o relógio de pulso e bafejava a fumaça do cigarro, à frente da escadaria de um teatro imponente.

Quando o táxi estacionou, sua senhora desceu sorridente, mas quando se viram, senti como se duas lâmpadas – sobre a cabeça de cada um – se apagassem, condenando-os a uma escuridão irremediável, e entraram elegantes no teatro. De baixo e de cima, da direita e da esquerda, os fantasmas foram chegando – agora, tarde da noite, parecem que diminuem –, mas ainda sobraram o moço e a moça que nasceram um pro outro: ele dá o coice e arruma o topete, ela relincha e solta um palavrão, e a disputa viril segue animada até que, aprumados, cumprimentam com educação exemplar os amigos que o aguardam.

Começa a me assustar o fato de que dessa cidade nebulosa que tomou a atmosfera do meu quarto não emane graça alguma. Há pontos de luz, em postes ilhados, mas nenhuma alma iluminada que os dissipe. Por um instante, volto à realidade, acendo um cigarro, como efeito automático do ar leve que agora paira o quarto.

Pouco a pouco, o tédio se esvai, mas não todo: deixa um ranço pegajoso que, este, tenho certeza, não partirá tão em breve. Depois, volto, e vejo o jovem contagiante sem a prostituta, a passos inertes, e seus olhos mergulhados num vazio sem denominação.

O senhor, também sozinho, parece ter deixado a senhora no teatro – a custo de uma desculpa qualquer – e com a mesma inquietação (somada de desespero) anseia por uma voz que insiste em não atender a quarta ou quinta ligação do seu celular.

O casal de jovens eqüinos acabou de sair no meio do espetáculo – imagino que seja um espetáculo – e os pneus do carro se foram cantando sob quatro olhos rasos e tristes. São todos fantasmas que, por mais que não pareçam tão horripilantes, não deixam um pingo de luz nessa cidade escurecida. E, talvez ela não saiba, talvez a mulher que eu amo não saiba, mas se ela pegasse o telefone agora e me dissesse oi tudo bem lembrei de você, sua voz demoliria essa cidade no mesmo instante, como um sopro de Deus, essa triste cidade.

* Guilherme Sardas é paulistano e jornalista.


Um comentário:

  1. Que lindo Guilherme.
    Nada como uma pequena palavra
    ou um gesto para nos resgatar
    dessas nuvens densas que insistem
    em nos rodear.
    Parabéns.
    Abraços

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