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Me afoguei na maré transbordando ao espelho
* Por Eduardo Murta
Aquilo não passaria de mais um enfadonho engarrafamento, não fosse a refinada arte dos espelhos. A maioria ainda bocejava, buscava sintonia do noticiário ou música que iluminasse a manhã. E a fileira de carros se perdia nos dois sentidos. Jeff vai regulando o volume do CD, a que sobreviva ao tédio. E, os dedos em forma de pente, ajeita a cabeleira à moda dos astros pop.
Num lampejo de imagens, súbito a encontrará ganhando vida em toda a extensão do retrovisor. Lábios projetados, insinuantes, em que passeia o vermelho do batom. Ele abandonará por um instante os fios acastanhados para se fixar nela. E estremecer ao sentimento de que aquela boca o convidava. De alguma forma soletrava seu nome.
Justo agora que planejava retirada estratégica dos clubes de paquera. Que se prometera a Estelinha. Que jurara eterno amor. Deixou que a racionalidade, deliberadamente, se partisse em cacos ao tornar a ver o contorno do rosto. Duvidou, voltou a mirar e confirmou: ela lhe sorria. E como era bela! Flutuava ao banco, quando o trânsito, em conspiração do destino, começou a se mover.
Ah, não queria perdê-la. Acreditou na reciprocidade e, sintonizando canção para vinho a dois em noite parisiense, pensou em como atar seus nós aos dela. Periscopeou, ruminou. Deu com o celular. E a mímica. Buzinou, apontou o aparelho. Ela gargalhou. Jeff sinalizou os números e esperou a chamada. Ansiedade beirando a taquicardia.
Ao primeiro toque, agarrou o telefone como fosse velho navegador diante da constelação-guia. Veio um “oi” mútuo, ligeiramente rouco e alongado, em que ambos visivelmente se derretiam. Pareciam ronronar. A frase fatal foi dela. Sem rodeios. “Me tire do lugar comum”. Uauuuu!!! Pediu então que o seguisse. Deu seta. No desafogo, tomou à direita.
Ela foi junto. Um atalho pelo bairro, a rodovia, as curvas, subida, serra, mirante, descida. Trinta minutos e estavam aos pés de uma cachoeira. Cenário de oásis, surgindo assim do nada. O encontro foi um duelo às avessas. Como esculpissem cada gesto, até as mãos se tocarem. Viajarem pelo rosto. O beijo. Delicadamente foram se desfazendo das roupas.
Esquecer aquela manhã de fevereiro já não mais havia como. As bocas se buscando aos moldes do rio de lavas incandescentes serpenteando o dorso da montanha. Languidamente vulcânicas. E os corpos num enrosco de justaposição. Na despedida, as alianças ficaram mais visíveis. Ela tocou-lhe o lábio com o dedo indicador, sugerindo que tão-somente a ouvisse. Que tudo fora lindo, mas que agora cada um seguisse seu caminho.
Se virou, entrou no carro e partiu. Sem olhar para trás. Jeff, pés ainda na água, levou longos minutos até se convencer de que aquilo havia sido real. Sequer o nome lhe revelara. Vá lá, que fosse como ela ditara. Mas escolhera crer que, num ponto qualquer, tamanha intensidade se converteria em algo tangível. Era um outubro, fim de tarde, ala de laticínios do supermercado. Vislumbrou os cabelos, num plano de costas... Ela.
Iria se aproximar e viu, desconcertado, outro homem entrelaçar seus dedos aos dela. Um giro lateral e a imagem o exilaria definitivamente em labirinto de geleiras: a barriga protuberante em estágio final. Deixou escapar o leite das mãos, se virou, sem se fazer notar. E o líquido cruzou-lhe por entre as pernas, formando um círculo de giz em que a sensação de paternidade, como uma maré, não o permitia ficar nem partir. Feito engarrafamento sem música, sem espelhos, sem portas de saída.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.
* Por Eduardo Murta
Aquilo não passaria de mais um enfadonho engarrafamento, não fosse a refinada arte dos espelhos. A maioria ainda bocejava, buscava sintonia do noticiário ou música que iluminasse a manhã. E a fileira de carros se perdia nos dois sentidos. Jeff vai regulando o volume do CD, a que sobreviva ao tédio. E, os dedos em forma de pente, ajeita a cabeleira à moda dos astros pop.
Num lampejo de imagens, súbito a encontrará ganhando vida em toda a extensão do retrovisor. Lábios projetados, insinuantes, em que passeia o vermelho do batom. Ele abandonará por um instante os fios acastanhados para se fixar nela. E estremecer ao sentimento de que aquela boca o convidava. De alguma forma soletrava seu nome.
Justo agora que planejava retirada estratégica dos clubes de paquera. Que se prometera a Estelinha. Que jurara eterno amor. Deixou que a racionalidade, deliberadamente, se partisse em cacos ao tornar a ver o contorno do rosto. Duvidou, voltou a mirar e confirmou: ela lhe sorria. E como era bela! Flutuava ao banco, quando o trânsito, em conspiração do destino, começou a se mover.
Ah, não queria perdê-la. Acreditou na reciprocidade e, sintonizando canção para vinho a dois em noite parisiense, pensou em como atar seus nós aos dela. Periscopeou, ruminou. Deu com o celular. E a mímica. Buzinou, apontou o aparelho. Ela gargalhou. Jeff sinalizou os números e esperou a chamada. Ansiedade beirando a taquicardia.
Ao primeiro toque, agarrou o telefone como fosse velho navegador diante da constelação-guia. Veio um “oi” mútuo, ligeiramente rouco e alongado, em que ambos visivelmente se derretiam. Pareciam ronronar. A frase fatal foi dela. Sem rodeios. “Me tire do lugar comum”. Uauuuu!!! Pediu então que o seguisse. Deu seta. No desafogo, tomou à direita.
Ela foi junto. Um atalho pelo bairro, a rodovia, as curvas, subida, serra, mirante, descida. Trinta minutos e estavam aos pés de uma cachoeira. Cenário de oásis, surgindo assim do nada. O encontro foi um duelo às avessas. Como esculpissem cada gesto, até as mãos se tocarem. Viajarem pelo rosto. O beijo. Delicadamente foram se desfazendo das roupas.
Esquecer aquela manhã de fevereiro já não mais havia como. As bocas se buscando aos moldes do rio de lavas incandescentes serpenteando o dorso da montanha. Languidamente vulcânicas. E os corpos num enrosco de justaposição. Na despedida, as alianças ficaram mais visíveis. Ela tocou-lhe o lábio com o dedo indicador, sugerindo que tão-somente a ouvisse. Que tudo fora lindo, mas que agora cada um seguisse seu caminho.
Se virou, entrou no carro e partiu. Sem olhar para trás. Jeff, pés ainda na água, levou longos minutos até se convencer de que aquilo havia sido real. Sequer o nome lhe revelara. Vá lá, que fosse como ela ditara. Mas escolhera crer que, num ponto qualquer, tamanha intensidade se converteria em algo tangível. Era um outubro, fim de tarde, ala de laticínios do supermercado. Vislumbrou os cabelos, num plano de costas... Ela.
Iria se aproximar e viu, desconcertado, outro homem entrelaçar seus dedos aos dela. Um giro lateral e a imagem o exilaria definitivamente em labirinto de geleiras: a barriga protuberante em estágio final. Deixou escapar o leite das mãos, se virou, sem se fazer notar. E o líquido cruzou-lhe por entre as pernas, formando um círculo de giz em que a sensação de paternidade, como uma maré, não o permitia ficar nem partir. Feito engarrafamento sem música, sem espelhos, sem portas de saída.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.
Crônica sensacional. Literatura vestida de gala, e não apenas por causa do leite derramado entre as pernas dele. Um encontro ocasional, embora surpreendente, e uma maneira de contar que só escritores, de fato, alcançam. Parabéns, caro Murta!
ResponderExcluirObrigado, Daniel. De volta das férias, é bom ver que ainda me honra com sua leitura. Que a vida siga nos inspirando por todo o sempre.
ResponderExcluirAbraços
Que texto, Murta! Impossível desgrudar os olhos da tela, tal o ritmo, o talento do autor. Maravilha!
ResponderExcluirBeijos