terça-feira, 9 de junho de 2009




Salva-vidas educacional

* Por Risomar Fasanaro

Recebo em minha casa, uma professora que atualmente exerce o papel de salva-vidas. Não, ela não trabalha na praia salvando os que se afogam no mar. Não é bem isso, mas é bem parecido. Beatriz (*) faz parte de um grupo de educadores, daqueles que deveríamos escrever com E maiúsculo. Pois é... Ela tenta salvar os que se afogam no ensino de hoje. Trabalha levando uma proposta de ensino aos professores das escolas estaduais que tiveram resultados ruins no IDEB (índice de desempenho da Educação Básica), em um dos estados do sudeste do país. Não preciso dizer qual, porque a situação das escolas é muito parecida em quase todos os estados da federação.

Em nosso encontro, quero saber tudo: como são hoje as escolas, os professores, os alunos, as aulas?...Ela fica meio sufocada com tanta curiosidade. Talvez não saiba que, mesmo distante da escola, continuo contaminada com o vírus da Educação.

Desolada ela me conta, e pouco a pouco meu entusiasmo, minha sede de curiosidade vai perdendo o brilho, vai se apagando, feito aqueles tecidos manchados em degradê, que começam com uma cor forte e vão esmaecendo até quase perder a cor.

Angustiada, ela relata e tento aqui reproduzir o que ouvi dela sobre uma das escolas em que esteve: os alunos ficam no pátio e corredores a qualquer hora da jornada de aula. Alguns comiam a merenda, outros apenas experimentavam o que as cozinheiras fazem e jogavam o restante no chão. Tocou o sinal, mas ninguém se dirigiu às salas; nem professores, nem alunos. Depois de uns quinze minutos é que alguns começaram a entrar na sala, mas dar aula mesmo nada, pois foi mais um tempo de “contenção dos ânimos”, chamada... Muitos estudantes ficaram na cantina tomando refrigerantes e comendo aqueles salgadinhos que parecem feitos de isopor.

O piso estava repleto de papéis, copos plásticos, canudinhos...Uma servente varria o pátio, mas não dava vencimento porque outros eram atirados no chão.

Ninguém sorria, ninguém se olhava. Nem os alunos nem os professores, nem os outros funcionários. A mulher, cabisbaixa, varria o chão sem reclamar. Havia uma tristeza no ar. Ouço isso e me lembro de um tempo em que alguém disse que “a escola era risonha e franca”. É...era um tempo em que as lousas eram negras, e as carteiras enfileiradas e de madeira escura. Não havia cantinas, a merenda era feita na própria escola, ou trazida de casa. Mesmo assim, alunos e professores superavam aquela tristeza do ambiente e sorriam, gargalhavam até.

Conversando com alguns daqueles estudantes, ela perguntou: o que querem eles ali? O que buscam? Um disse que não gostava das aulas, que o professor de inglês não sabe a matéria, por isso ele não iria entrar na sala de aula. Outro falou que o de Matemática também não ensina direito. Uma aluna comentou que a merenda é boa, as funcionárias cozinham muito bem, mas não sabia explicar por que os colegas jogam no chão o lanche feito ali.

Ela procurou os professores. Reuniu-se com um monitor que acompanha a professora de Língua e Literaturas. O rapaz lhe contou que sua parceira de ensino lhe mostrou a prova que vai aplicar sobre “A Hora da Estrela”. Minha amiga leu as perguntas e achou estranhas. Elas não tinham nada a ver com o livro. O rapaz disse que é contrário à realização de provas para avaliar leitura literária, e ela concordou com ele, mas mesmo assim, os dois analisaram o que a mestra havia elaborado. Verificaram que ela sequer sabia qual é o gênero da obra. Elaborou questões como se o livro fosse de contos. A esta altura vou me encolhendo cada vez mais no sofá.

A coordenadora procurou a professora e, muito delicadamente, perguntou por que aquelas perguntas estavam ali. Ela leu o romance? Muito envergonhada, a professora confessou que não leu. Nunca leu nada de Clarice Lispector. “Não é um livro de contos? Pensei que fosse...” E o que é pior: disse que leciona das 7 às 23h, e quando chega em casa tenta ler, mas é vencida pelo cansaço. Não lê nada do que indica aos alunos, do que pede nas provas. Não tem tempo. O parco salário que recebe não lhe permite ter um período para ler.

A esta altura do depoimento da coordenadora, se forma um nó em minha garganta. Tento engolir o choro, mas não consigo. Nós duas choramos. A que ponto chegou o ensino?! Como foi que a escola pública que era considerada a melhor do país, que promovia um ensino de primeiríssima qualidade, se tornou isso que vemos hoje? Como se modifica o atual descrédito quanto ao conhecimento? Que valor tem o aprender, o ensinar, o conhecer, no mundo atual?

Hoje, a maioria dos professores brasileiros que leciona nas redes estaduais, não consegue assinar um jornal, uma revista, ir ao teatro. Seus salários não permitem essas extravagâncias. Hoje, a Educação vai tão mal quanto a floresta amazônica. A cada dia é mais vilipendiada, mais arrasada, e parece tão indefesa quanto àquela.

Como foi que profissionais que eram tão respeitados se tornaram essa coisa mal desenhada, mal vista, mal remunerada a ponto de sequer poder se preparar para exercer sua profissão? Como é que temos aceitado o discurso de que os problemas da escola pública estão relacionados apenas aos professores e alunos e não a um sistema falido como um todo? Onde se discute, de verdade, que as condições de trabalho e de infra-estrutura das escolas não possibilitam um ensino de qualidade? E como se pode ter esse ensino em escolas onde as classes têm 50 alunos? Como se pode estudar em uma escola destruída materialmente?

Como é que um mecânico pode fazer uma aeronave voar, se ele não souber montar o motor do avião? Como é que um médico poderá prescrever remédios, se ele não souber diagnosticar a enfermidade do paciente? Pois é, hoje nossos professores estão sendo (des)preparados por faculdades ruins, remunerados por governos ruins, que não perceberam ainda a importância da Educação, por isso lhes paga um salário de fome; nossos alunos também estão assistindo a aulas desinteressantes, também ruins, algumas inclusive que lhes passam ensinamentos incorretos.

Não respeitam os professores, agridem seus mestres e ainda ameaçam “se denunciar, morre”. Os alunos são ruins porque os professores são ruins, os professores são ruins porque os alunos são ruins, e é nesse círculo vicioso que queremos transformar o país. O que esperamos? Um milagre? Vamos assistir a essa farsa até quando? Até que a tragédia termine e as cortinas se fechem?

(*) nome fictício

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

10 comentários:

  1. Risomar, penso que o quadro narrado por você está na educação de São Paulo. Apesar de tudo, creio que não podem existir alunos bons onde há mestres medíocres. Ou dizendo de outra maneira, onde há mestres aviltados, pelos salários, condições de ensino. Os alunos são o público final, nem sempre paciente, desse caos.
    Abração

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  2. Urariano
    Obrigada pelo cometario. Concordo com você em parte. Não é so no estado de SP. talvez aqui estej o quadro mais grave, mas não acreditoque seja o único. E isso se dve aalgo que envolve mai do que apenas professores e alunos, mas a descaso de oda uma estrutura que vem se desmoronando há longo tempo. Feito uma casa que começa a desaba, e como niguém deu ateção, um dia ela desmrona de vez. Acho que ficou claro o estado do sudeste ao qual me refiro, não ficou? Não sei se nos outros estados também se trabalha em dupla, mas acho que a situação que descrevo é o que tenho ouvido de professores de muitos lugares,e o que a midia em geral noticia. Meu título era "Educação: um terra devastada", porque é isso que está acontecendo à Educação do país: situação semelhante à que vemos acontecer com a mata atlântica, com a floresta amazônica...
    Forte abraço
    Risomar

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  3. Urariano
    Obrigada pelo cometario. Concordo com você em parte. Não é só no estado de SP. Talvez aqui esteja o quadro mais grave, mas não acredito que seja o único. E isso se deve a algo que envolve mais do que apenas professores e alunos, mas ao descaso de toda uma estrutura que vem se desmoronando há longo tempo. Feito uma casa que começa a desabar, e como ninguém deu atenção, um dia ela desmorona de vez. Acho que ficou claro o estado do sudeste ao qual me refiro, não ficou? Não sei se nos outros estados também se trabalha em dupla, mas acho que a situação que descrevo é o que tenho ouvido de professores de muitos lugares,e o que a midia em geral noticia. Meu título era "Educação: uma terra devastada", porque é isso que está acontecendo à Educação do país: situação semelhante à que vemos acontecer com a mata atlântica, com a floresta amazônica...
    Forte abraço

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  4. Risomar, o texto que recebi não tinha título. Pode ser que o que coloquei não seja o mais adequado, mas na correria da edição foi o que me veio à mente. Parabéns pelo texto!

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  5. Oi, Pedro

    Isso não tem a menor importância.Seu cuidado em editar é impecável. É que coloquei o título ou no corpo da mensagem, ou no "assunto".Você não tem culpa nenhuma. Só quis que Urariano entendesse a comparação que faço entre a Educação e o meio-ambiente.Que pra mim,a educação hoje é uma terra devastada. Que o descaso é tão grande quanto o que há em relação ao meio-ambiente. Estou errada? Pode ser. Nunca me considerei a dona da verdade.
    Abraços
    Risomar

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  6. Educação é uma palavra renegada nesse País. Assim como cultura, arte e tantas outras. O analfabetismo já invade as cadeiras das universidades. Você acha que exagero? A situação ainda é pior do que aparenta. 09 beijos, Risomar.

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  7. Essa situação dramática acontece também nos cursos superiores. A desmotivação é a mola mestra do ensino, ou seja, não há mola nenhuma, apenas desinteresse. Triste realidade Risomar, que, espero alguém muito sábio, e quem sabe, meio mágico consiga acabar com ela e restabelecer a ordem.

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  8. Obrigada, Fabio, obrigada, Mara

    Li esta semana no "Estadão" que escolas particulares vão pagar para os professores fazerem cursos, para melhorar o ensino. Achei a ideia excelente. Melhor ainda se se estender a toda a rede pública. Não é justo que o ensino de qualidade fique restrito apenas aos que tem maior poder aquisitivo.
    plagiando Fabio, 9 beijos no dois
    Risomar

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  9. O problema não é exatamente a decadência da educação. Alarmante é que nada se faça para deter tamanha ruína. O pobre que depende do estudo está desamparado, enquanto os demais (minoria) fazem até cursos avulsos de informática e idiomas. As oligarquias reproduzem-se de uma forma ou de outra, e tal é hoje visível já a partir da infância. Somos uma democracia excludente, perversa, sem amor nem respeito aos brasileiros.

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  10. Pra quem teve mãe como professora e pelo menos quatro irmãs também nas salas de aula é familiar reconhecer essas pequenas tragédias do Brasil. Que, em volume, são uma enormidade. Há que ser herói pra tocar o sonho adiante.

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