terça-feira, 12 de maio de 2009




História com H

* Por Risomar Fasanaro

Dois sabiás cantam todo dia frente à janela da cozinha. Janela é pretensão minha. Vejo-os através de uma nesga do muro de tijolos vazados. Primeiro chega um. Aproximadamente uma hora depois, chega o outro. E o ritual se repete: ele canta alguns minutos e depois vai embora. Quando eles surgem, paro tudo que estou fazendo e fico a ouvi-los.

Pode parecer estranho alguém ficar vendo e ouvindo sabiás através de tijolos vazados, mas cada vez mais constato: é mais importante a qualidade (de tudo) que a quantidade. O que é melhor: uma imensa janela que fica de frente para uma parede cinzenta de um edifício ou as frestas de uns tijolos que me permitem ver e ouvir aqueles dois sabiás?

É claro que mais sorte teve Gonçalves Dias, meu Poeta romântico predileto, quando os viu cantar nos galhos das palmeiras. Mas se de palmeira dependessem esses sabiás, não haveria crônica, nem canto, nem nada.

De tanto vê-los e ouvi-los, ainda que através de uma nesga, tornaram-se presença obrigatória em minha vida. E enquanto os escuto crio uma história (com h, porque é verdadeira): os dois vivem à procura um do outro. Alguma coisa, alguma interferência os separou e, hoje, eles se buscam. Contei esta história a uma pessoa e ela disse: “eu acho que se eles quiserem, vão se encontrar...” Não tenho tanta certeza.

O primeiro tem um canto belíssimo, fica sobre os galhos de uma árvore frondosa, linda, que existe no quintal da vizinha. Canta, canta, canta, desesperadamente, como se à procura do que virá depois. Uma hora depois chega o segundo, e garanto a vocês, só pode ser uma sabiá, porque chega sempre atrasada...

Como toda fêmea que se preza, deve ficar tomando banho em alguma lagoa para ficar com as penas limpas e brilhantes e, depois, provavelmente se secará ao sol. Come uma ou outra ervinha que lhe torne o hálito agradável e vem ao encontro. Fez tudo isso para encontrá-lo, mas, pobrezinha, sempre que chega, o macho (com tanta pontualidade só pode ser macho) já foi embora...

Então ela canta. Canta, canta, canta e sinto no seu canto o desespero do desencontro. Seu canto é mais triste e menos belo que o do primeiro sabiá. Mais triste que um tango na voz de Carlos Gardel.

Você sabia que cada sabiá tem seu próprio canto? Que não há dois sabiás com o canto igual? Só fiquei sabendo disso recentemente... E é graças a esse novo conhecimento que os identifico e tenho quase a certeza de que o primeiro é macho e o segundo fêmea.

Todos os dias fico torcendo para que eles se encontrem. Percebo a persistência dos dois, mas isso ainda não aconteceu. E fico imaginando o dia em que acontecer, a beleza que vai ser ouvir aquele dueto.

Uma amiga se surpreendeu quando mostrei a “nesga” de visão que tenho, e mais ainda por eu ter descoberto os sabiás. Tentei lhe explicar essa teoria da importância da qualidade e ela parece ter concordado.

Transfiro isso para a vida: há encontros raros em que a intensidade é tão grande, que a gente entrega a alma, e quando a pessoa se vai nos deixa uma saudade plena em que a gente não se sente mutilada, mas preenchida, enriquecida, sentindo que a alma se foi, mas tal qual o fígado de Prometeu, o mito grego, ela se recompõe a cada manhã e de novo se tece para um novo encontro.

Não é isso mais forte, mais intenso mais verdadeiro do que ver algumas pessoas todos os dias que não nos dizem nada?

Assim é minha nesga de paisagem: rica, plena e que me leva a acreditar que a felicidade precisa ser reconhecida a todo instante, porque a vida é muito curta, e não podemos nos dar ao luxo de desperdiçar nada.

Talvez ela, a vida, seja apenas isso: uma nesga de felicidade no meio de um turbilhão. Precisamos reconhecer essa “nesga” e valorizá-la. Talvez só as pessoas que estiveram muito próximas da morte entendam o que estou falando. Mas vale a pena tentar reconhecer quando você estiver diante dela, da nesga de felicidade.

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.


7 comentários:

  1. É muito bom dar de cara com a felicidade e reconhecê-la. A morte também é fácil de ser identificada. Ambas são muito marcantes. Bela história para ser lembrada sempre, e um ensinamento precioso: " não podemos desperdiçar nada". Belo!

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  2. Você sabe ver, pq seleciona o que ver. Essa é uma interferência da sensibilidade, uma alma de artista que nunca ninguém poderá lhe tirar, cara Risomar. Não importa se o olhar atravessa uma janela, uma nesga de tijolos ou uma cerca de arame farpado. Importa é que seu olhar chega lá e vc vê! Questão de alcance. Pois vá, mas volte sempre e nos traga no regresso histórias tão lindas como esta. Parabéns.

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  3. Viva Risomar. Grande crônica, minha amiga. Desde a escolha dos pássaros até a conclusão. Um passarinho me diz que o Brasil ganhou uma cronista.

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  4. Risomar, que texto lindo !
    Sabiá e saudade.
    Realmente encontros verdadeiros são raros e com certeza, mesmo ausentes, nos preenchem a alma .
    Eu tive uma sabiá. Ela comia na minha mão.

    Porém, certo dia, meu gato siamês, conseguiu alcançar a gaiola, abrindo uma fresta. Minha sabiá voou para a liberdade.
    Acredito que não por muito tempo, já que estava acostumada a viver em gaiola....
    Amei seu texto, cheio de canto e encanto como o canto dos sabiás.

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  5. Não uma nesga, mas uma janela de rara beleza, seu conto, Risomar! Encantada, amiga! Beijos e parabéns!

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  6. Meus amigos

    Celamar, Daniel, Evelyne, Mara Narciso, Urariano
    Obrigada pela leitura e pelo carinho que se revela nos comentarios generosos.
    Um beijo em cada um
    Risomar

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  7. Risomar, entre uma imensa janela que fica de frente para uma parede cinzenta de um edifício ou as frestas de uns tijolos onde se pode enxergar muito mais, eu nunca tenho dúvidas por onde devo olhar nessa vida. Seu texto está lindo! 13 beijos aqui e agora.

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